Analisando Sofia Coppola: O Estranho que Nós Amamos (2017)
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Analisando Sofia Coppola: O Estranho que Nós Amamos (2017) e o despertar do desejo

Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa primeira série de cinco textos serão analisados os filmes: As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), O Estranho que Nós Amamos (2017) e Priscilla (2023). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Sofia Coppola.

Sofia Coppola se propôs a um desafio diferente. Depois de Maria Antonieta (2006), se aventurou em mais uma história de paternidade com Um Lugar Qualquer (2011) e depois o drama de jovens nascidos e viciados na febre do jornalismo de celebridade hollywoodiana em Bling Ring – A Gangue de Hollywood (2013), e retornou ao lugar da prisão da feminilidade com O Estranho que Nós Amamos (2017). Digo que é um lugar diferente pois O Estranho que Nós Amamos é a adaptação do livro de mesmo nome do escritor Thomas P. Cullinan de 1966, que já havia ganhado uma adaptação para o cinema em 1971 com Clint Eastwood no papel principal. Apesar de Sofia fazer uma nova adaptação cinematográfica, as obras de 2017 e 1971 se diferenciam muito uma da outra, especialmente no tratamento das mulheres.

Apesar dessas diferenças, a espinha dorsal da história segue a mesma. Durante a guerra civil estadunidense, o cabo Jonh McBurney (Collin Farrell) é encontrado ferido pela garota Amy (Oona Laurence), que o leva para o internato de garotas da Miss Marta Farnsworth (Nicole Kidman) para ser cuidado. McBurney é um soldado que lutava ao lado da União, ou seja, era um soldado inimigo nas terras dos confederados. A tensão da guerra, em que homens e mulheres estavam separados pelas circunstâncias, junto a repulsa e ao desejo despertado pela chegada do estranho, criam cenários quase perfeitos para Sofia Coppola, de maneira lenta e silenciosa, preparar o terreno para a implosão da ordem vigente dentro do internato.

Vencedores do Festival de Cannes 2017

DE 1971 A 2017: A COMPARAÇÃO DO INCOMPARÁVEL

Seria desonesto se não citasse a obra do diretor Don Siegel e seu protagonista galã Clint Eastwood. A abordagem do filme de 1971 é inteiramente no personagem do Clint, e as mulheres orbitam em torno dele, apenas. Já em 2017 as mulheres orbitam em torno do próprio desejo e que, após o despertar desse desejo, ele se liga ao personagem do Collin Farrell, e isso muda completamente o tom das abordagens. Em 2017 o destaque se concentra exclusivamente nas mulheres, e na versão de 1971 há a escolha consciente de pintar tons genéricos para elas e tons vibrantes para Clint Eastwood.

Don Siegel na direção e os roteiristas Albert Maltz e Irene Kamp, se perdem no machismo pela forma que tratam as mulheres, mas fazem escolhas mais corajosas na estética, como cores mais quentes e movimentos de câmera mais ‘inventivos’. Outra diferença é o fato do cabo McBurney ser muito verborrágico, e obviamente ser o protagonista, já que estamos falando de Clint Eastwood. Há tramas rasas e subdesenvolvidas, como a relação incestuosa de Miss Martha (Geraldine Page) com o irmão, e a relação da empregada escravizada Hallie (Mae Mercer), que tirando um pequeno momento, muito pontual, consegue brilhar. O personagem de Eastwood empurra a trama sem qualquer tempo, há uma urgência incompreensível que prejudica o desenvolvimento de todos as personagens, em especial as mulheres.

Já com Sofia Coppola em 2017, a câmera é mais estável, as cores são lavadas e há uma ambientação crepuscular. A verborragia do homem é abandonada (felizmente) e abre espaço para os silêncios. Tramas rasas e mal desenvolvidas são substituídas pelo desenvolvimento do desejo das mulheres sob intensos olhares, charmes e alguns debates cheios de ironia que esbarram na hierarquia, além da diminuição das personagens dentro do internato. Coppola faz uma escolha mais sóbria na estética, e é mais corajosa no roteiro e na direção das atrizes, em especial com Kirsten Dunst, sua parceira de longa data no papel da inocente Edwina Dabney.

Sofia parece dilatar o tempo para o desejo despertar, e só a partir disso coloca em alguma evidência, com muita cautela, o cabo McBurney. O investimento de sedução do personagem do Collin Farrell é menos agressivo, ajudando a criar um mistério em torno desse estranho que desperta sentimentos e paixões avassaladoras, ao mesmo tempo que entre elas, surge uma competição velada sobre quem irá angariar o amor desse estranho tão familiar. Em O Estranho de Coppola não há pressa, há tempo, e ambos os filmes têm praticamente a mesma duração.

O ESTRANHO FAMILIAR DE SOFIA

Essa história é familiar para Sofia Coppola pois, de certa forma, repete sua jornada cinematográfica como já analisamos nos textos anteriores. Em tese são mulheres aprisionadas por um sistema social vigente, criando uma moralidade conservadora frente ao próprio desejo. O estranho dentro desse familiar, é que em O Estranho que Nós Amamos, o desejo encontra um destinatário, mesmo que o destinatário queira matar o sujeito desejante. A repetição se encontra justamente pelo risco de vida que o desejante corre ao desejar, e matar o destinatário, no caso o homem, é também, pelo menos nesse universo, matar o desejo, ou seja, é impossível desejar em liberdade.

A morte se desenha a partir da ‘traição’. Essa traição chega ser divertida pela forma que é considerada, especialmente pelo contexto histórico que a narrativa é ambientada. É interessante pensar que, apesar de Colin Farrell não ser o grande protagonista dessa história, ele, em tese, seria o antagonista mais eficaz que se poderia ter, justamente pela forma que manipula o desejo inocente das mulheres, inclusive da própria Miss Martha, a mais velha. Inocente não parece ser a melhor palavra para descrever, mas se o contexto é completamente repressivo, o despertar da libido sexual nasce de um lugar no mínimo ingênuo. Quem fica a cargo dessa personificação do desejo é a professora Edwina Dabney, papel brilhante de Kirsten Dunst que encarna um apaixonamento idealizado frente ao estranho.

Por outro lado, a jovem Alicia, papel de Elle Fanning, é mais ‘atrevida’ e carrega um pouco mais de malícia, o que causa a grande competição entre elas e posteriormente a virada dramática na metade do segundo ato. Sofia entende os conflitos e a maneira que cada uma entende o próprio desejo, e se aproveita disso para desenhar a competição entre elas. A manipulação masculina atravessa todas as mulheres do internato, nenhuma delas é poupada. Isso causa um estranhamento que cobra um preço caro, não para elas objetivamente, e sim para o cabo McBurney. A promessa feita por ele, de se deitar com Miss Martha, Edwina e Alicia, acaba sendo descoberta por Edwina que, ao vê-lo deitado com Alicia, em uma briga de ciúme, ele cai da escada fraturando a perna.

Esse acidente abre margem para o que pode ser lido como uma vingança das mulheres, que até então separadas pela competição em torno do masculino, se veem numa situação de alguma união e reestabelecimento da ordem que tinha sido quebrada. A decisão de amputar a perna do soldado, ao mesmo tempo que parece sensata, visto a gravidade do ferimento, tem um toque de vingança e um toque de perversão, algo muito comum em desejos traídos. É como uma punição pela ilusão sofrida, um ato performático que obriga sujar as mãos, inclusive para sobreviver. Isso evidentemente desperta a ira do cabo McBurney, que busca a retribuição da vingança sofrida, mas é preciso dobrar a aposta.

Para a manutenção da ordem o preço fica mais caro, e as apostas devem continuar a subir, e o final é a morte, sempre ela. Num ato de intensa ameaça e violência de McBurney, Miss Martha se vê frente a única saída aparente, dar um fim a desordem, reestabelecer seu lugar de autoridade. É nesse instante, após todas as mulheres se transformarem em vítimas e verem suas vidas ameaçadas, que a ideia do envenenamento aparece. Quase como uma rima narrativa, a jovem Amy, responsável apresentar o estranho e colocá-lo para dentro, é a mesma que o colocará para fora, já que é ela quem colhe os cogumelos venenosos. Edwina fica alheia a essa decisão, já que continuava apostando na fragilidade da sua paixão e pouco escolhe sobre o fim dela. O que era algo ingênuo, se transforma em trauma, a segunda dose da repressão.

O Estranho que Nós Amamos se sustenta a partir da lógica dualista do sexo. O desejo feminino despertado a partir da presença masculina. É uma dança das cadeiras sobre quem ficará com o que. O homem que tudo quer e acha que tudo pode, e as mulheres que não podem nada, a não ser dentro de uma lógica restrita e submissa, e isso como sabemos não é poder nada. Sofia Coppola trabalha bem essa dança de cadeiras e escolhe focar exclusivamente na dinâmica das mulheres. Elas são as protagonistas, em especial Nicole Kidman, Elle Fanning e Kirsten Dunst, cada uma representando um desenho da manifestação da libido, reforçando a ideia da sexualidade polimórfica tão presente em seus filmes.

Coppola escolhe como último plano todas as mulheres juntas, na entrada no internato, enquanto a câmera se afasta e mostra o portão fechado com elas do lado de dentro e o cadáver do cabo McBurney do lado de fora. O conflito das formas desejantes criou o caos e desestruturou o ordenamento, mas apontou para um lugar diferente, a sobrevivência, a preservação de algo em comum. Entre o matar e o morrer, que seja a vida a ser escolhida, e que a morte se apresente como o fim indesejável, menos para aquele que ameaça. Se o aprisionamento é destino, que seja um aprisionamento entre elas, e não sob a tutela de um estranho que pouco sabe e tudo quer, inclusive a liberdade sobre o desejo.

NOVOS DESTINOS PARA NOVAS HISTÓRIAS

No recorte que escolhi fazer sobre as histórias contadas por Sofia Coppola há algo que considero como a tetralogia da feminilidade, que termina por enquanto em Priscilla (2023). Há de fato, uma diferença e amadurecimento nas narrativas conduzidas pela diretora muito bem pontuadas. Ela sai da morte do sujeito de desejo em As Virgens Suicidas (1999) e Maria Antonieta (2006), para a vida em O Estranho que Nós Amamos (2017), e para a continuidade da vida em Priscilla (2023). Isso tudo fica mais bonito ao observar o amadurecimento de Sofia como autora, inclusive da forma que ela se apropria das técnicas cinematográficas para narrar as histórias que deseja contar. Há certa urgência e ironia se observarmos os filmes de 1999 e 2006, e em 2017 e 2023 há calmaria e vazios discursivos interessantes e bem construídos.

Esse crescimento que entendo como amadurecimento, é muito nítido na narrativa em O Estranho que Nós Amamos pela segurança e controle técnico e estético que Sofia apresenta a audiência, e que lhe rendeu o prêmio de Melhor Direção em Cannes. Outro detalhe importante é que, como há outra película cinematográfica para comparação, fica nítido a justa ideia de que filmes dirigidos por mulheres conseguem transmitir maiores e melhores sensações e entendimentos sobre as protagonistas femininas. Sofia fez a sua adaptação do livro e, como disse em entrevistas, estava mais focada em contar a sua história a partir do livro do que do filme pregresso. As semelhanças entre as obras se dão mais pelo texto base do que as obras feitas para o cinema, o que consolida, como se preciso fosse, seu lugar no hall de cineastas autorais.

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