Analisando Sofia Coppola: Priscilla (2023) e a falência da idealização
Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa primeira série de cinco textos serão analisados os filmes: As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), O Estranho que Nós Amamos (2017) e Priscilla (2023). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Sofia Coppola.
Em Priscilla, Sofia Coppola apostou numa história contemporânea de uma personagem da cultura pop internacionalmente relevante até determinada época, e que apesar dos recortes feitos na sua trajetória, consegue explorar a famosa gaiola dourada que alguns casamentos com estrelas do mundo artístico podem proporcionar. O filme é adaptado da biografia Elvis e Eu, que conta a história de Priscilla Beaulieu, ex-esposa de Elvis Presley. O livro é escrito pela própria Priscilla em parceria com Sandra Harmon, e foi lançado em 1985 com uma adaptação para as telas com o mesmo nome em formato de minissérie em 1988.
Sofia Coppola adapta esse mesmo livro e escolhe uma abordagem mais enxuta e poética, algo recorrente na filmografia da diretora que já observamos nos textos anteriores dessa série. É quase cômico como algumas coisas dentro da indústria cinematográfica funcionam. Em 2022, um filme que aborda essa história por outro ângulo foi lançado, só que o foco era obviamente a história do Elvis, no filme dirigido por Baz Luhrmann que foi um sucesso de público e crítica. Apesar das semelhanças entre Priscilla de Coppola e Elvis de Luhrmann, eles são incomparáveis. Enquanto Elvis aposta no espetáculo, na lógica mais farsesca e em um protagonista carismático, muito comum nas obras de Baz, em Priscilla se vê um lugar mais intimista, silencioso e atento a detalhes extremamente opressores e por vezes violentos.
PRISCILLA, A PRISIONEIRA
Existe algo em Priscilla que é um pouco mais refinado e talvez mais arriscado por contar a história da mulher que viveu com o maior e mais admirado cantor de rock norte-americano dos últimos anos, a ideia de desafiar um legado. Sofia Coppola desafia a idealização do astro ao colocar Priscilla – interpretada com magnitude por Cailee Spaeny, rendendo o prêmio de melhor atriz no festival de Veneza – numa prisão graciosa. Coppola fez uma cinebiografia clássica, do apaixonamento a separação, dando destaque a momentos da intimidade do casal dentro da mansão Graceland, a ‘’prisão’’ que Priscilla seria mantida a sete chaves durante seu casamento.
Priscilla com 14 anos, conheceu Elvis com 24, durante seu período de alistamento militar obrigatório na Alemanha durante a Guerra Fria (1959), já que os pais da nossa protagonista moravam no país estrangeiro a serviço do exército estadunidense. Nessa época, Elvis já era um grande astro e estampava capas e capas de revistas como um sexymbol. Sofia Coppola faz questão de abrir o filme, durante os créditos iniciais, com planos-detalhe em maquiagens, esmaltes e sapatos da protagonista, e nos itens de decoração da mansão Graceland. Esse é o tom de Priscilla, um eterno retorno ao lugar decorativo da mulher, sustentado em uma estética de posição social sob fortes regras do que usar, como usar e se portar sendo a esposa (troféu) do rei do rock.
A pontuação da idade faz muita diferença, já que temos uma adolescente que idealizava seu ídolo e que de repente tem a oportunidade de conhecê-lo. Além da óbvia diferença de idade, há uma diferença que só é percebida nas estrelinhas, que é o lugar idealizado, produzido fantasiosamente a partir de conceitos pré-estabelecidos. Há também a diferença de poder, que demora a dar notícia na trama, mas quando chega é raivosa e violenta. A performance de gênero é muito bem acentuada, já que estamos numa década pré-revolução sexual, e ainda que algumas poucas coisas mudassem anos mais tarde, Priscilla não seria agraciada pelas mudanças sociaise continuaria sendo aquilo que estava destinada a ser enquanto se mantivesse naquele casamento, a mulher ideal que cumpre seu papel de esposa, guardiã do sacramento matrimonial.
Jacob Elordi interpreta Elvis numa caracterização muito parecida, especialmente o tom de voz e a repetição da palavra ‘’baby’’ ao se referir a Priscilla. Isso talvez conte um pouco da dinâmica de poder experimentada dentro da relação. Elvis se apaixonou por uma adolescente que a todo tempo é colocada nesse lugar de ‘’minha pequena ‘’, uma inocência latente e completamente sem agência de si, refém das vontades de um adulto. É interessante que quando eles se conhecem, Elvis aparentemente demonstra fragilidade pela perda da mãe, e é nesse caldo de idealização, fragilidade e submissão que a relação deles floresce.
Sofia acerta na escalação de Spaeny que tem 1,55m de altura e Elordi que tem 1,96m, e ambos têm basicamente a mesma idade na vida fora das telas. Esse elemento da altura dos personagens reforça a ideia muito presente no longa, a distância moral entre eles. Ele no ‘‘alto’’, e ela ‘‘em baixo’’, e os olhares de cima para baixo que sempre partem dele em momentos de discussão. A diretora utiliza todos os elementos simbólicos e imagéticos para dar o tom estético da narrativa que está contando. O figurino e a maquiagem contam do desenvolvimento de Priscilla enquanto crescimento de idade em paralelo ao crescimento da submissão que experimenta na relação com o astro.
É muito simbólico o quanto Elvis mantém Priscilla numa posição infantilizada e nega a todo custo qualquer desejo que ela possa vir a ter. Na despedida da Alemanha – tempo que ficariam distantes por longos meses – se dirigindo a ela diz:
‘’Promete que vai continuar do jeito que é agora?’’
Essa frase, além de reforçar essa ideia de submissão e infantilidade, conta de um sujeito totalmente inseguro de sua masculinidade e até do seu talento. Apesar da idealização por parte de Priscilla produzir uma total paralisação frente aos desmandos do cantor, é inegável que Sofia aproveita para mostrar que Elvis Presley era só mais um homem comum. Um sujeito homem, branco e hétero que teve uma ascensão meteórica da carreira, mas era completamente submisso ao poder de outros homens, especialmente do pai e do coronel – esse último mais bem desenvolvido e apresentado no filme de Luhrmann.
Priscilla ocupa um lugar ausente de identidade nessa relação repleta de insegurança de ambas as partes. É difícil imaginar se ver num ambiente em que tudo estava disponível, a qualquer tempo e momento, e ser a namorada do maior astro do showbusiness do mundo. É um nível de deslumbramento inimaginável para meros mortais, e talvez essa seja a dificuldade em fazer um julgamento prévio dessa adolescente recém-chegada a um mundo completamente novo. Como negar as medicações para dormir? Por que não perdoar e seguir em frente após ataques de fúria do cantor? O melhor a se fazer – inclusive para não se desfazer da idealização que sustentava a relação – era se submeter a uma dinâmica ausente de desejo próprio e autoria das ações.
O CONTROLE E A VIOLÊNCIA
Sofia Coppola explora em Priscilla uma imagem pouco conhecida do astro, sua violência e controle sobre Priscilla, inclusive sobre os desejos sexuais dela. A diretora que também é roteirista, faz escolhas muito certeiras sobre o que mostrar. Inclusive há várias cenas em que Elvis se recusa a transar com Cilla – nome que ele carinhosamente a chamava – pelo simples fato de o desejo vir dela. Quando parte dela, ‘’não é o momento certo’’, e por poucas vezes era o momento certo para ele, pois ele transava com várias mulheres enquanto estava em turnê ou em Hollywood, lugar que tentava emplacar uma carreira fracassada na atuação.
Com 17 anos, Priscilla vai morar em Graceland. Elvis se empenha para que ela fosse morar na mansão, e quando ela chega, é estabelecido um relacionamento no mínimo instável, pelo menos por parte dele, já que Cilla não opinava muito sobre nada. Os planos-detalhe que somos apresentados nos créditos iniciais, ganham espaço a partir desse momento. Priscilla estava caminhando para se transformar em mais um adereço de Graceland, um item doméstico. A fotografia de Philippe Le Sourd é muito sensível em registrar os detalhes e ângulos dos adereços estéticos. Há algo estranhamente bizarro – visto com os olhos de hoje é claro – numa cena que Priscilla antes de dar à luz ao bebê, cuidadosamente coloca cílios postiços para ir ao hospital. Priscilla carrega essa opressão furiosa durante toda a rodagem, inclusive nos momentos de parece estar tudo bem, mas nunca está, algo típico de relacionamentos abusivos.
Além dessa violência sutil, há cenas em que Elvis é extremamente violento, especialmente quando Cilla o confronta frente a seu envolvimento com outras mulheres. Isso parece ser a forma encontrada por ela de o confrontar frente a opressão que estava submetida. Priscilla usa o ciúme como arma para minimamente se impor, e talvez como argumento para se afastar da prisão dourada que vivia. Há cenas de explicita violência que Elvis submete Priscilla, pontuando sua frágil masculinidade. No auge da lua de mel – dentro de Graceland, é importante que se diga – Elvis, numa guerrinha de travesseiros que começa de forma inocente, se transforma em um ato de violência.
‘’Eu não quero brincar com um homem’’ – diz Elvis enfurecido.
É muito interessante como Sofia mostra a decadência de Elvis frente ao próprio ego e o quanto esse sujeito era mais um homem comum para sua época, e que ao ver o desenvolvimento da autonomia de sua esposa se sente ameaçado e tenta a toda força, inclusive física e psicológica, puni-la. A falta de sexo também é uma punição muito presente, o que reforça a sensibilidade artística de Sofia ao tratar dessas questões na sua cinematografia, em que o prazer feminino é sempre relegado a um lugar obediente, e de preferência assexuado. Outra cena emblemática é a negação do astro em transar com Priscilla após a gravidez, ou durante a gravidez, em que Elvis simplesmente decide dizer a ela que eles precisavam de um tempo, e no momento seguinte volta atrás, demonstrando arrependimento.
É evidente que o relacionamento dos dois era um relacionamento abusivo, e que a dificuldade de sair desse lugar relacional é dificílimo, seja pelas circunstâncias afetivas ou materiais. E a personalidade aparentemente passivo-agressiva de Elvis dificulta tudo, como se fosse um problema a ser tolerado, indo do carinho a agressão em questão de segundos. Toda essa dinâmica de altos e baixos é mérito de um roteiro que em uma cinebiografia linear, faz recortes importantes, mas econômicos, seja por apresentar momentos chave de intensos conflitos, intercalados com luxo e poderio econômico, seja com uma quietude barulhenta e um vazio espacial opressivo e angustiante. E no centro disso tudo uma mulher apequenada tamanha violência que destrói a idealização do casamento dos sonhos.
Priscilla segue o caminho da feminilidade ao longo da história, e Sofia Coppola faz essa escolha recortada num ambiente quase imaginário. É interessante a provocação feita pela diretora de desconstruir um relacionamento que aparentemente seria o desejo de milhares de pessoas, provando que por trás de qualquer genialidade artística existe um sujeito como qualquer outro, e que esse sujeito pode ser violento, intolerante e manipulador. Priscilla Presley felizmente coloca um fim no casamento e não na própria vida, como é comum nas histórias de Sofia que acompanhamos ao longo dessa série de textos. Muito do que aconteceu, talvez só tenha sido possível pelo momento histórico que ditava o tom das mudanças comportamentais e culturais de uma época. Ainda que o divórcio fosse algo desgastante, é interessante que Priscilla banca suas escolhas depois de, ao longo de anos numa relação que a diminuía como mulher e sujeito de desejo, faz a escolha de seguir o próprio desejo que parece menos moldado a partir de uma figura idealizada.
SOFIA DESAFIA O LEGADO
Apesar de Priscilla tratar dos mesmos temas explorados pela cineasta ao longo da sua carreira, a sagacidade em contar os dilemas femininos em outras situações é que engrandece a trajetória de autora de Sofia. Seja numa família branca conservadora no subúrbio, uma rainha num palácio em um momento de grande fissura social ou numa mansão luxuosa de um dos maiores artistas do rock mundial, tudo isso conta de um contexto estéril da posição feminina na sociedade. Há sempre um custo – geralmente muito alto – para existir num mundo que despreza o desejo feminino e que historicamente foi construído as sombras do desejo masculino.
Sofia Coppola sabia que estava potencialmente mexendo num vespeiro ao contar essa história. Ela desafia a visão imortalizada e endeusada de Elvis Presley, e em uma entrevista ao Financial Times, diz que não fez esse filme para os fãs do cantor. Colocar Elvis num lugar violento, frágil e viciado em comprimidos, coisa que sabemos que ele era, mas por conveniência pouco se fala, requer coragem e financiamento. Nessa mesma entrevista, Sofia conta que ‘’não queria transformá-lo em vilão’’, e isso realmente ela não faz. Elvis era sujeito comum, com suas questões, e que fora dos holofotes, esse homem, que porventura era Elvis Presley, também tinha suas falhas. Priscilla que nunca havia sido consagrada com uma obra cinematográfica para contar sua história por conta própria, agora nas mãos de Sofia encontra um lugar no mundo.
Os detalhes do design de produção por Tamara Deverell, a direção de arte por Danny Haerbelin e o diretor de fotografia Philippe Le Sourd, ajudam a montar o mosaico artístico com o roteiro e direção de Coppola. Em uma entrevista concedida para a jornalista brasileira Isabel Wittmann, do site Feito Por Elas, Sofia conta da necessidade de construção de uma réplica da mansão Graceland e dos desafios em referenciar uma história sem elementos que poderiam ser importantes, já que não houve autorização para o uso de imagens e músicas pela empresa detentora dos direitos autorais do artista. Mas tudo é tão meticulosamente arranjado e bem-produzido que essas dificuldades passam desapercebidas durante a exibição do filme.
Também na entrevista ao Financial Times, ela conta da dificuldade de captação de recursos – Priscilla tem um orçamento irrisório comparado a outros grandes projetos de Hollywood – para uma cineasta que tem uma carreira consolidada, que busca contar histórias autorais e que ligeiramente não tem como objetivo principal fazer montanhas de dinheiro. Por outro lado, isso garante uma autonomia artística pouco reconhecida na indústria, ao mesmo tempo que é arriscado e pode diminuir as chances de bons filmes, seja por Sofia ou outros cineastas autorais. Talvez essa seja apenas uma das enormes contradições ao trabalhar com cinema no mundo, e ainda mais difícil para cineastas mulheres, inclusive para Sofia.