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O neon nas novelas e a artificialidade narrativa

Você já se perguntou alguma vez o motivo para que as séries de streaming tenham uma audiência mais diversa (e, arrisco dizer, maior em número) que as novelas do Brasil?

Uma das estratégias para que histórias se repitam de forma inovadora é justamente o trabalho da direção de arte, que, fora do Brasil, chama-se Design de Produção por um motivo bem óbvio. Cabe a esse departamento se preocupar com a narrativa visual como um todo, e nisso inclui-se cabelo, maquiagem, objetos de cena, locações, iluminação e, em alguns casos, até o enquadramento. Quando os responsáveis pela arte e pela fotografia se juntam para planejar ideias, qualquer filme, série ou novela alcança resultados imensuráveis.

Infelizmente, em sua ambiciosa busca por destaque internacional, algumas produções brasileiras, com ênfase nas novelas mais atuais, têm metido os pés pelas mãos, repetindo fórmulas que deram certo uma vez, de modo ipsis litteris, como se tivessem a certeza de que continuaria dando certo nas produções seguintes. Um exemplo disso são as produções pós-rebranding da Globo, que ocorreu em 2021. No começo, foi interessante. Modificaram o logotipo e pareciam ter amadurecido tecnicamente. O problema é que a novidade durou pouco. A sensação é de que estamos acompanhando as mesmas novelas com mudanças discretas no roteiro, mas que, no fim, tornam-se repetitivas e sem identidade definida.

De 2021 para cá, a empresa adotou um esquema de cores bastante específico. Rosa, azul e lilás, tudo em neon. Só que essa paleta não ficou restrita ao logotipo, aparecendo, principalmente, na iluminação dos cenários, não importando qual fosse o núcleo, cidade ou recorte temporal. Isso me fez questionar várias vezes se ninguém ali percebeu o quanto essa abordagem destruía a “fé cênica” do espectador. Afinal, em quantas residências vocês já foram em que as lâmpadas eram rosa, azul e lilás neon? Pois na Globo, não somente todos os espaços adotam essas lâmpadas, mas elas também permanecem acesas simultaneamente, como se a conta de energia fosse um mero detalhe.

Essas questões já têm sido discutidas há bastante tempo por escritores, ensaístas e críticos literários do outro lado do Oceano. Lá pelo século 19, Samuel Taylor Coleridge criou o conceito de “suspensão da descrença”, colocando o leitor (neste caso das novelas, o espectador) como principal responsável por adentrar e acreditar nas regras daquele universo que está consumindo. Décadas depois, em seu ensaio “Sobre Histórias de Fadas”, Tolkien tomaria as rédeas da situação e colocaria os autores em seus devidos lugares como principais responsáveis por essa crença ou descrença.

É claro que é no fim das contas é preciso um equilíbrio entre autor e espectador para que uma história funcione e cumpra sua função de entreter. No entanto, o ponto dessa discussão é que de certa forma torna-se ainda mais difícil crer numa história de ficção quando o realismo é estabelecido e há furos o tempo todo. Numa novela que se passe nos dias de hoje, numa capital do Brasil, sem qualquer indício de fantasia ou distopia, seria natural encontrarmos esse tipo de iluminação caseira em todos os núcleos de todas as histórias? 

De certa forma, estamos nos restringindo a uma reflexão acerca de lâmpadas, mas quando juntamos a isso o “todo”, o que fica é a ideia de que é preciso muito mais do que recursos técnicos para se criar novelas (ou séries) únicas o bastante para adentrar o universo dos fandoms e alcançar a imortalidade no imaginário coletivo. Isso não significa que o elemento-chave precise ser a direção de arte ou fotografia, aliás, no século passado, as novelas mais amadas tiveram sua identidade relacionada estritamente ao roteiro. Mas se for para escolher o caminho da estética, das cores e texturas, é preciso bastante cuidado, principalmente ao adotar abordagens que fogem do realismo cru proposto e prometido desde o início para o público.

Fontes:

Passeando pela Teoria Literária #9: Suspensão de descrença | Vevsvaladares

Fantasia e História: uma abordagem teórica em J.R.R. Tolkien | Emanuelle Garcia Gomes

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