O cinema nacional nunca foi tão “cool”
Gostar de cinema nunca foi tão cool: como a geração Z tem redescoberto o cinema, especialmente o brasileiro, e como a influência de críticos e resenhistas nas redes sociais contribuiu para esse movimento.
Nos últimos meses, acho justo dizer que o cinema brasileiro “viralizou”. Seja por meio de páginas inteiras voltadas à disponibilização de títulos ao alcance de um clique (acervo do drive e perfis similares no X, além de grupos de Facebook que ainda resistem), seja por meio de vídeos virais no Tik Tok de estudantes de cinema citando seus filmes favoritos e também mais odiados, seja por páginas de “shitpost” voltadas para a comunidade cinéfila, pela trend das ecobags da Mubi ou pelas lives da Twitch: ser cinéfilo na internet tem estado “em alta” e discutir cinema, especialmente nacional, nunca foi tão “cool”.
A despeito do que possa parecer pelas sinopses virais de vídeos de um minuto, extremamente superficiais e que servem como meros guias de consumo e propagandas de streaming, o interesse da geração Z pelo cinema nacional, especialmente aquele feito antes da retomada, tem sido cada vez maior. Nos últimos dias, a minissérie Hilda Furacão tomou o Tik Tok e o X com vários “edits” (vídeos curtos com cenas cortadas da obra e músicas “atuais”) e chamou atenção até mesmo de quem nem é do Brasil. Gringos se encantaram com as cenas de Ana Paula Arósio e Rodrigo Santoro vivendo um amor proibido o qual apenas pelos recortes das cenas realmente exala uma sensualidade irresistível. O mesmo tem acontecido com a minissérie “Tapas e Beijos” com Andrea Beltrão e Fernanda Torres, cujos áudios e vídeos viralizaram no TikTok durante todo ano de 2023, atraindo para a série e para suas protagonistas uma atenção nunca vista desde a sua finalização em 2015.
Dentro de uma bolha mais cinéfila e “nichada”, filmes do cinema novo, cinema marginal e as pornochanchadas passaram a estar mais presentes nas discussões em redes sociais. Surgiram edits de Rogério Sganzerla ao som do funk “Aquariano Nato”, primeiramente atribuído a ninguém menos que Chico Moedas. Uma combinação incomum, mas que fez um sucesso tremendo, de Sganzerla a Godard. Tenho me deparado também com os mesmos vídeos curtos com imagens do Scorsese e músicas virais entre a geração Z, questionando o sistema de monopólio da Marvel nos cinemas (“my shit is”), um pensamento que por sinal me pergunto se passaria pela mente de tantas pessoas mais jovens antes da popularização das suas falas “polêmicas” pelas redes.
Me lembro de estar em uma roda de conversa com Helena Ignez no último Festival de Mulheres no Cinema, em novembro do ano passado, e ouvir que o cinema nacional tem passado por um momento nunca antes visto, sem precedentes, justamente sobre a sua popularização mais recente. Não me recordo ao certo quem fez esse apontamento, mas eu lembro de refletir sobre meu próprio conhecimento acerca do cinema nacional, observando a minha idade de 20 e poucos anos e percebendo como a internet teve um papel primordial nessa minha jornada, influenciando não apenas meu conhecimento sobre o que foi produzido aqui ao longo dos mais de 100 anos de história, como também a minha jornada dentro da crítica.
Até 2021, tinha assistido uma quantidade ínfima de filmes nacionais. Já gostava de falar sobre cinema nas redes sociais (acredito que sou uma das primeiras que nasceu, de fato, no Instagram e então migrou para os sites, no sentido inverso o qual a crítica tradicional está acostumada), mas o cinema brasileiro ainda era um território desconhecido para mim o qual até então se resumia ao que ao que eu tinha visto na televisão, entre novelas e obras do período da retomada, como uma criança dos anos 1990 e 2000. Por muito tempo me vi repetindo as “máximas” que hoje vejo com tanto pesar sobre o cinema nacional, que este “não presta”, “só tem palavrão”, “é pior que o argentino”. Frases comuns atribuídas a estes filmes que pouco dizem sobre o nosso cinema em si, e sim bem mais sobre a falta de acesso, desconhecimento e completa ignorância das pessoas acerca do que foi produzido no país aos trancos e barrancos ao longo desse centenário.
Falar sobre Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Luis Sergio Person, Leon Hirszman, Neville D’Almeida e até mesmo sobre Glauber Rocha e a própria Helena Ignez era algo distante para mim e, penso, para muitos jovens de 20 e poucos anos que nasceram e cresceram sob a influência da Disney, da Marvel e toda essa americanização da nossa cultura, fervorosamente reforçada desde os anos 80. A geração atual, e eu me incluo nisso mais uma vez, tem redescoberto o nosso cinema e, de modo geral, o que foi feito antes dos anos 2000, pelas nas redes sociais. O YouTube, por exemplo, tem sido fundamental para alimentar esse movimento que só foi possível – e é importante apontar isso – graças ao trabalho de restauração de muitos desses filmes, por leis de incentivo à cultura e organizações sem fins lucrativos, permitindo a posterior disponibilização em massa desse acervo que antes ficava restrito a pesquisadores e/ou festivais.
Já foi muito mais difícil encontrar obras brasileiras da década de 40, 50, 70 e até mais, para assistir em uma qualidade minimamente aceitável, que dirá ao alcance de um clique. Trabalhos como o do Cine Limite, por exemplo, quando expostos na internet, reforçam a importância da valorização do cinema nacional que por muito esteve perdido no tempo, e até queimado “vivo” pela negligência estatal – como foi o caso do incêndio na Cinemateca Brasileira em 2021. Quando o Estado mais tardou (ou propositalmente, atrasou) em tomar para si o papel que lhe é devido de resgate e restauração da cultura brasileira, especialmente do cinema brasileiro, foi quando críticos e resenhistas passaram a se manifestar ativamente nas redes sociais expondo a importância do nosso cinema e da valorização da sua história ao alcance de gerações mais jovens. Por essa razão, é impossível falar sobre esse movimento de redescoberta do cinema nacional sem levar em consideração o poder de influência que a crítica cinematográfica possui hoje nas redes sociais.
Enquanto muitos críticos rechaçam veementemente o título de influenciadores, ainda assim é difícil negar que suas críticas podem sim influenciar pessoas nas redes sociais, tanto positiva quanto negativamente, em uma proporção exponencialmente maior e, acredito eu, nunca antes vista. Apenas por uma postagem. Todas essas iniciativas de restauração de títulos não teriam provocado um movimento tão grande se não fosse pelo incentivo, ativo, de críticos que atuam hoje como influenciadores também nas redes sociais, compartilhando visões e conhecimentos que antes eram restritos a um grupo muito pequeno de pessoas.
É claro que a resistência de uma crítica mais tradicionalista é válida: o volume de pessoas influenciando outras, como a palavra já diz, permite que várias assimilem a crítica erroneamente, como algo que não é, isto é, isenta de pensamento crítico. Assimila-se a compreensão de um texto a resumi-lo em um mero guia de consumo, “se crítico X não gostou, logo não devo consumir” – algo que eu me questiono se desde a crítica impressa não sempre existiu também. Por outro lado, a influência positiva desse movimento de redescoberta do cinema nacional aponta para uma verdade impossível de ignorar: a crítica cinematográfica perde muito ao escolher não estar nas redes sociais e ao insistir em ignorar o lado bom de poder influenciar pessoas a consumirem o cinema além da superfície, encorajando o pensamento crítico e potencializando o papel institucional que a crítica sempre teve.
Ao meu ver, é preciso entender a internet enquanto uma ferramenta dúbia. A horizontalização da comunicação na contemporaneidade permitiu que uma quantidade bem maior de pessoas influenciasse outras de forma negativa e os algoritmos, claro, influenciam muito para que a superficialização do conteúdo também cresça, mas os virais nacionais e o interesse de uma geração mais jovem no cinema “made in Brazil” é um sinal de que ainda existem pessoas da geração Z (e muitas) interessadas em consumir o cinema para além do que lhes foi ensinado superficialmente. Eu fui uma prova disso e muitas outras pessoas virão depois de mim, quem sabe se interessando inclusive pelo estudo do cinema e pela crítica não por conta de jornais impressos, mas por sites, blogs, Twitch, Instagram, TikTok e tantas outras redes sociais que ainda podem surgir.
Meu desejo para 2024 e para os anos seguintes é que o cinema nacional se torne ainda mais “cool” e que aprender mais sobre cinema e cultivar interesse pelo pensamento crítico da arte seja algo ainda mais popularizado. Para os críticos, o nosso trabalho nas redes sociais é fomentar esse tipo de movimento de redescoberta, valorização do cinema enquanto arte, é revisar obras e apresentá-las a um público que poderá conhecê-las através de vocês, através da partilha dos seus conhecimentos e visões não como uma verdade absoluta, mas como um caminho para uma reflexão individual e enriquecedora. O ofício crítico não morreu, apenas tem passado por um processo de readaptação que inclui a adequação às redes sociais como pressuposto fundamental para sua difusão e continuação. É isso.