Crítica: Leme do Destino - 47ª Mostra de São Paulo - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Leme do Destino – 47ª Mostra de São Paulo

Leme do Destino
Direção: Júlio Bressane
Roteiro: Júlio Bressane
Elenco: Simone Spoladore, Josie Antello, Débora Olivieri, João Vítor Silva.
Sinopse: Duas mulheres vivenciam o despertar do amor e as suas repercussões.

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A segunda cena de “Leme do Destino” se concentra em Simone Spoladore (maravilhosa, dona de uma expressividade que a torna uma atriz Bressaniana nata no mesmo molde de Alessandra Negrini, Marjorie Estiano e Helena Ignez) e Josie Antello conversando numa espécie de quintal, numa mesinha de bar, bebendo, sentadas em duas cadeiras muito próximas, trocando debates filosóficos, em falas poéticas e chegando perto uma da outra constantemente numa crescente. 

Tudo isso é filmado numa cena sem cortes, com uma câmera estática, distanciada das personagens e com o campo do quadro cinematográfico que registra isso muito aberto. A fotografia de Pablo Baião é amarelada, suada, com um aproveitamento já recorrente nos filmes de Bressane de um fator visceral da filmagem digital, para compor as cenas.

Depois dessa apresentação, quando caminham juntas, a encenação já muda de figura. A câmera persegue as personagens de maneira livre, ela fica torta, observa elas de cima, de baixo, pela horizontal, enquanto as duas caminham. Em cenas de sexo, a câmera se aproxima dos seus corpos entrelaçados, dos seus toques, dos seus beijos, numa montagem cheia de cortes constantes seguidos desses detalhes, ela entra junto daquela relação de um jeito que é tão delicado quanto é carnal. Que é fervente. 

O filme então vai observando a construção do amor, a vivência do sexo, a organização das relações e de como elas vão se transformando. Da crueldade que é viver um amor, depois do ímpeto, depois da vivência máxima da relação, a chama se apaga e outra chama surge. E vai se somando na vida de uma das envolvidas. E aí como? Aquele amor só passa? Observa o outro a distância até desaparecer? E um amor acaba ficando no caminho do outro assim como os planos de Spoladore ao final do filme ficam no caminho frontal de todo o resto? Suas reações internas de observar a câmera e chorar, sofrer, refletir e viver um amor com consciência que está sempre sendo observada num jogo de observação. 

Bressane aborda o processo do amor, dos amores e do ciclo de começos e términos sem precisar dizer que está narrando isso. As sensações e vibrações de encontros amorosos – inclusive entre duas mulheres, mas não apenas isso – já foram palco do cinema de Bressane constantemente como “Garoto”, “Filme de Amor” e até o seu clássico “Matou a Família e Foi Ao Cinema” (1969). É como se ele sempre revisitasse esse seu domínio em estudar esses fatores. Esse seu prazer por filmar, pela concepção do que filmar, a liberdade do que filmar e encontrar tantas emoções internas nisso.

O mestre dos mestres do cinema brasileiro faz isso pela maneira imagética que constrói sensações, o jeito livre e ao mesmo tempo ultra controlado com que pensa sentimentos traduzidos com ações puramente cinematográficas. A vibração de rompante e de calmaria. A inserção de uma viagem pra Índia filmada em primeira pessoa acompanha esse fluxo de momentos vividos que se diluem dentro dele mesmo. Um amigo meu, o Lucas Kin, depois da sessão disse que a cena pode ser de uma viagem que Bressane fez, tem guardada e ele viu que poderia encaixar nesse filme aqui. E não duvidaria nada se fosse isso mesmo.

Seus filmes são pensados em transmitir um estado de delírio puro, de caos fervente, e seus atores embarcam nessa espécie de construção que é tão histriônica quanto é poética. Eles são atacados por objetos como bananas jogados em cima deles, seus atores são cortados por inserções na montagem de objetos ganhando vida e passeando por suas casas, por seus cômodos, dançam, namoram e flertam com um filtro avermelhado num cenário de cortinas vermelhadas numa vibração de completo tesão e caos, seus encontros são observados com o máximo de distância e proximidade totalmente doados ao extremo de cada coisa, suas atrizes são registradas com uma atenção pra seus reflexos em vidros e por aí vai. 

Tudo é louco, tudo é visceral, mas tudo se comunica dentro de si pela mão firme que guia tudo isso. Que nos leva por tudo isso como essa grande viagem que são os filmes de Júlio Bressane. Onde uma simples cena de minutos observando algo como um papel de frente com a câmera fechada nisso e o que acontece com ele chegando até o fim do processo ganha um impacto inacreditável de beleza.  Isso também não esquecendo a beleza do Rio de Janeiro ao redor de tudo isso, a beleza dos detalhes da sua natureza, do mar, do seu som, das suas ondas, sempre constante envoltas do jogo de paixões, observações e toques dos seus personagens. É literalmente o fogo e o mar vivendo junto. Se namorando. Se transformando. Se alimentando.

  • Nota
5

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