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Cinema Mundial

Crítica: Cangaço Novo

Cangaço Novo:
Criação: Maria Bardan, Eduardo Melo
Elenco: Allan Souza Lima, Alice Carvalho, Thainá Duarte, Marcélia Cartaxo, Pedro Lamin, Adélio Lima, Hermila Guedes.
Nacionalidade e lançamento: Brasil, 2023 (18 de agosto de 2023)
Sinopse: Ubaldo recebe uma herança que mudará seu destino para sempre. No coração do deserto do nordeste, ele se tornará o líder de um bando de bandidos impiedosos, cumprindo o legado de seu pai biológico – um mítico cangaceiro.

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Não me identifico muito com essa ladainha neoliberal, disfarçada de neutralidade, de que a arte existe fora da política. Antes mesmo porque política, em um sentido geral, abrange a vivência de um povo que compartilha experiências, se comunica e vive em sociedade. Só essa razão, a arte já nasce como fruto de uma experiência social e coletiva, diante da qual a política vem como cerne. O Brasil viveu, nos últimos anos, uma verdadeira carnificina que diante da política enviesada quis matar a sua arte. O Cinema, especialmente, foi jogado às traças, em alguns casos às chamas, enquanto uma ideologia supostamente neutra (e há quem acredite em Papai Noel) tomava para si as rédeas de um país desgovernado, que ia de mal a pior em direção ao caos. Em todos os aspectos possíveis.

O ano de 2023 marca um certo renascimento do país. Não que eu seja uma pessoa que acredita que milagres acontecem, mas porque eu acredito que a arte respira e o povo tem, sim, o poder. Quando se organiza, quando pensa criticamente, quando se reconecta com a própria cultura. Por essa razão, digo que para mim, Cangaço Novo é exatamente isso: o respiro de um país que se renova, o renascimento de um Brasil que tem memória. Diante de uma história que traz para si o zelo pela ancestralidade de um povo sinônimo de resistência, a série de Aly Muritiba e Fábio Mendonça é como o renascer de uma consciência social que há muito estava perdida de seu senso, em um Brasil de terra arrasada.

Como milhares de brasileiros, Ubaldo (Allan Souza Lima) se cansa de um sistema que lhe parece injusto demais. Sem dinheiro para ajudar o pai doente em São Paulo, ele recorre ao crime, ao Cangaço Novo, na pacata Cratará e passa a agir como seu pai, Amaro Vaqueiro, um homem que vivia às margens da sociedade e que, da mesma forma anos antes, se rebelou contra o sistema injusto e massacrante. A descrença na política e na polícia enquanto instituições do povo é um dos pontos mais interessantes dessa história, cujo modus operandi é o de desmoralizar esses personagens os quais são frequentemente tão moralmente questionáveis quanto aqueles que pertencem ao estado dito paralelo.

Em tela, a maldade é nua e crua. Não há tempo para falsos sentimentalismos e mesmo os dramas familiares são abordados de uma forma muito pragmática, na maior parte do tempo. A urgência da câmera na mão, a violência gráfica que a todo tempo nos invade e um dos usos mais interessantes do drone que eu já vi, são alguns artifícios que irão nos situar em uma narrativa onde o amor é raro e quase sempre se confunde com o desejo e o objetivo, mesmo, é sobreviver. Pura e unicamente ver o dia de amanhã, sem perspectiva no horizonte de um futuro melhor.

O final acaba por transbordar esse sentimento de pessimismo que parece não ter fim e o caminho que nos leva até ele acaba por contaminar, pouco a pouco, a moral do nosso protagonista. Forçado a se tornar um sujeito respeitável, Ubaldo corrompe sua alma e paga um preço alto por isso. Não existe redenção e muito menos pedidos de desculpas, ele bem sabe que está sozinho em um mundo que segue, ali, a Lei do Talião. A violência por sua vez gera mais violência e, então, em tela não existe mais cor, nenhuma emoção é passada pela direção de arte que não seja aquela que nasce das paisagens do barro, dos cactos e das plantas de galhos retorcidos, típicas do sertão.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha comenta sobre o sertão virar mar e o mar virar sertão como sendo o único momento onde seria plausível desistir. Anos depois, Cangaço Novo traz uma mesma perspectiva: ainda que a luta seja injusta e a paridade de armas esteja longe de existir, não há saída que não seja lutar e continuar vagando pelo mundo castigado, contra todos os Antônios das Mortes. O Cangaço Novo é um movimento de reação, uma resposta à injustiça que assola o povo nordestino e sertanejo e a qual, precisamente nos últimos anos, nos entregou a um país com fome e carente – como diz a personagem de Leilianne: um povo carente de tudo.

Morreram Lampião e Maria Bonita, mas a fome e a seca continuam a castigar o Brasil tanto quanto uma política nefasta que só olha pelas pessoas quando tenta tirar proveito para si. Anos passam, a situação é a mesma e o Cangaço Novo é um retrato de um tempo ao passo que também representa a nossa própria História. Com um elenco majoritariamente nordestino, a série é importante e voraz, ainda, porque se aproxima da vivência desse povo o qual me orgulho de fazer parte não para trabalhar um vitimismo, nem para buscar falso moralismo, mas para abordar a força e a dificuldade, na mesma medida. Sem vilões, nem mocinhos.

São obras como essa que irão nos levar de volta a pensar nosso próprio mundo, enxergar nosso próprio povo. Chegou o momento de olhar para as telas e reconhecer a luta de comunidades inteiras de uma forma verdadeiramente honesta e, porque não, incrivelmente inventiva e talentosa. Cangaço Novo une o conteúdo a uma técnica bem explorada para criar ação e muito drama, se estabelecendo com folga como uma das melhores obras cinematográficas de nosso tempo.

  • Nota
5

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