Crítica: A Rainha Diaba - 46ª Mostra de São Paulo
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Crítica: A Rainha Diaba – 46ª Mostra de São Paulo

A Rainha Diaba – Ficha técnica:
Direção: Antônio Carlos da Fontoura
Roteiro: Antônio Carlos da Fontoura, Plínio Marcos
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 1973 (46ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Do quarto dos fundos de um antro de prostituição, o marginal Rainha Diaba controla com mão de ferro o crime organizado da cidade. Para evitar que um de seus homens de frente caia nas mãos da polícia, Rainha Diaba encarrega Catitu de inventar um bandido perigoso e entregá-lo à polícia no lugar do homem procurado. Restauração e criação da cópia em DCP 4K é uma realização do Janela de Cinema de Recife em parceria com a organização Cinelimite e o laboratório Link Digital/Mapa Filmes. Os materiais originais são provenientes do Arquivo Nacional e do CTAv.
Elenco: Milton Gonçalves, Odete Lara, Stepan Nercessian, Nelson Xavier, Iara Côrtes, Wilson Grey.

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Ter a chance de assistir a um filme restaurado e em tela grande muitas vezes evidencia ainda mais o tamanho da força que esse filme possui e demonstra que ele seja visto com a grandiosidade que merece. Na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo desse ano tivemos a chance de assistir a diversos clássicos do cinema brasileiro e internacional dessa maneira, entre eles está a obra–prima “A Rainha Diaba”, um dos meus filmes brasileiros favoritos pessoalmente em uma cópia restaurada pela equipe do Cine Limite. Dirigido e escrito (em parceria com Plínio Marcos) por Antonio Carlos da Fontoura, o filme tem como centro uma disputa por poder pelo controle do narcotráfico do Porto de Santos que é comandado pela personagem título, a Rainha Diaba interpretada por Milton Gonçalves, uma travesti ao mesmo tempo cruel e também melancólica.

O roteiro do filme parte de uma série de traições, reviravoltas, violências e intrigas um tanto Shakespearianas que envolvem diferentes personagens – quase todos desprezíveis e sem caráter em algum nível –  que habitam esse microcosmo do baixo clero da marginalidade até que tudo isso exploda numa catarse de violência que une todos os personagens no ato final. Fontoura disse na sessão que o seu saudoso amigo, o também cineasta Arnaldo Jabor, descrevia o filme como “uma mistura de Tarantino e Almodóvar quando eles ainda nem tinham surgido”, e é uma comparação bastante apropriada. O filme usa ao máximo uma linguagem exagerada, excessiva, de cores fortes, de personagens e ações caricatas e ao mesmo tempo mistura com uma violência que em grande parte do tempo é estilizada, cômica, com mortes lentas e extremadas e no ato final se transforma num mar de sangue e mortes onde a gravidade é sentida por esse exagero.

A escolha do roteiro em se utilizar totalmente de gírias daquela época e dos criminosos daquele período fazem com que essa conversa com a comédia seja ainda mais rica, é como se estivéssemos acompanhando uma charmosa e fascinante viagem do tempo para expressões e atitudes que não são existem mais e são capturadas no passado. Isso torna que a realização de um filme policial de gênero feito no Brasil seja tão rica porque ao mesmo tempo que o filme se apropria de características de quadrinhos, de Blaxploitation, de videoclipe, de filmes policiais B pulps e de uma vitalidade muito pop, ele tem um sabor extremamente brasileiro na sua direção de arte, nos cenários, nas cenas de apresentação musical ultra iluminadas, nas suas falas, nos movimentos dos atores e no espirito malandro que invade o filme. E são malandros que são vistos sem nenhum romantismo ou glamour. Pelo contrário são todos seres humanos terríveis e capturados por um humor que só ressalta essa piada cruel daqueles personagens. É a captura perfeita do cinema policial brasileiro.

A mise –en–scène que o Fontoura organiza pro filme é uma das mais inspiradas do cinema brasileiro partindo dessa ideia de um caos visual e sonoro – aquele ruído que acompanha as cenas do filme – que se movimenta num cenário de planos e ações todas muito orquestradas e pensadas friamente, é um caos ao mesmo tempo cômico e brutal que mescla tanto um quanto o outro até que ele te impacte pela forma carnal que a câmera se interessa e se aproxima pelas caretas, corpos, expressões e violências que os personagens cometem. Personagens interpretados por uma reunião dos melhores atores do audiovisual brasileiro em interpretações viscerais como Stepan Nercessian, Odete Lara, Nilson Xavier e diversos outros com foco claro num genial Milton Gonçalves que compõe a complexidade e nuances da sua Diaba toda pensada no seu modo de falar, nas suas expressões, seus olhos e suas caretas tão maravilhosas indo da tristeza de uma câmera que se aproxima da sua solidão mesmo quando ela é cercada pelas suas amigas e o seu sadismo assustador e cômico na cena de tortura da personagem de Odete Lara. Por mais que esse seja um filme os anos 70 que assume a caricatura e o exagero como linguagem cinematográfico, vemos uma travesti negra que por mais que seja uma caricatura como todos os personagens do filme são, comandando um grupo de homens que a temem – e justamente por isso tem que ocultar a sua transfobia, que é um dos motivos que leva aos planos de traição deles – e se afirmar num universo extremamente preconceituoso sem nenhum tipo de receio. E mesmo com a caricatura e o exagero, Diaba sempre é observada como um ser humano complexo com desejos, amores, amizades, tristezas, solidões e afetividades ao mesmo que também é alguém extremamente cruel, violenta, inteligente, manipuladora e com uma sede de sangue e vingança que o filme não faz questão de esconder ou desculpar. Algo lindo e visionário num filme permeado por observar como esse lado mais obscuro da marginalidade pode conter ao mesmo tempo humor e destruição.

  • Nota
5

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