Sem Condecine, streaming se torna ainda mais lucrativo para o exterior
A maior falácia dos últimos anos, principalmente durante o governo Bolsonaro, foi a alimentação da noção de que o mercado do streaming salvaria o audiovisual brasileiro da penúria armada por Bolsonaro por puro ódio e lobismo com o mercado internacional.
Na prática, acumulamos cada vez mais desempregos, uma vez que uma Ancine quase inoperante e uma pandemia pelo meio do caminho trouxe muito desalento a uma classe que já vinha sofrendo duros golpes desde o próprio golpe de Temer na democracia.
Sem recursos públicos, nenhum país anda para frente, menos ainda com o possível fortalecimento da indústria cinematográfica.
Os números não deixam mentir: desde a aprovação do Fundo Setorial do Audiovisual em 2006 e o lançamento da Lei da TV Paga (SeAC/marco infra-legal de comunicações), o Brasil injetou pouco mais de R$1 bilhão na economia, divididos entre mais de mil projetos (muitos coproduções internacionais) e atingiu o top 10 no ranking de maiores indústrias, sendo na América Latina o segundo maior.
O sucesso do FSA se deve ao Condecine, o sucesso da Lei da TV Paga também. A Lei da TV Paga instituiu a Condecine Teles, formato do tributo cobrado diretamente ao setor de telecomunicações, naquela época já muito explorava a atividade audiovisual por meio da própria TV a cabo, que dá o nome popular da lei.
Minha geração de profissionais foi beneficiada pelos recursos advindos de toda essa regulação. Fui a primeira estagiária em uma produtora cinematográfica sem ter sido indicação de parentes/amigos, foi um momento onde se podia sonhar com um audiovisual mais inclusivo e descentralizado.
Se o tributo é tão bom assim, por que existe a pressão para o seu desmantelamento?
Em primeiro lugar, a pressão das telecomunicações em cima da reversão da Condecine Teles desde que a Lei da TV Paga foi promulgada. Sempre considerando um gasto indevido, os principais operadores de TV e demais entes envolvidos na regulação, já foram até mesmo ao STF tentar acabar com o tributo.
Com o golpe de 2016 e a infeliz eleição do Bolsonaro, o compromisso com o mercado internacional e possibilidade de peitar um lobby para reduzir a força da Lei do SeAC se tornou uma realidade constante.
O fim da Condecine não foi proposto somente agora, esse desenho foi idealizado e colocado em prática nos últimos anos pelo Grupo de Trabalho (GT) formalizado pelo governo Bolsonaro para diminuir o “arcabouço” regulatório do SeAC.
As primeiras medidas do GT foram direcionadas justamente para os assuntos jurídicos e fiscais que hoje manda a legislação, entre eles a redução nas exigências em se comprovar o cumprimento da cota de tela e possíveis caminhos para reduzir a contribuição fiscal.
Vale aqui dizer que, no âmbito das telecomunicações, estamos falando de empresas bilionárias, praticamente donas de um monopólio no país, o que faz da contribuição uma maneira de equilibrar forças na cadeia audiovisual.
Hoje, a Condecine Teles representa 90% da verba garantida pelo Fundo Setorial do Audiovisual, o mais importante fomento direto à nível federal para o audiovisual. O plano de recolonização e de dependência externa é muito claro a essa altura do campeonato.
No entanto, a coisa ainda piora muito. Em contato com servidores da agência esta semana, os números de arrecadação para 2023 são extremamente alarmantes.
O principal festival Ibero-americano, Ibermedia, vai receber do Brasil uma verba de apenas R$600 mil, o que dificulta e muito a atuação do país nos editais internacionais.
Já a arrecadação prevista para a Condecine, até então, girava em torno de R$800 milhões, uma injeção de ânimo para reativar a máquina de produção, podendo colocar aí muitas realizações independentes que esperam há anos um sinal verde mais concreto.
Além disso, também não existe nenhuma previsão de uma nova arrecadação da Condecine, já aí pensando no contexto da reeleição e também da aprovação do PLOA pelo Congresso mais tarde no ano.
É possível que o único dinheiro que entre nos cofres da Ancine, caso a aberração passe, seja um valor em torno de apenas R$600 mil, advindos de outras dívidas que foram ficando retidas pelo meio do caminho.
Dessa forma, a Ancine organiza um orçamento de apenas R$2 milhões para os editais do Fundo Setorial do Audiovisual, algo completamente fora da realidade e da capacidade produtiva dos profissionais do setor.
As mudanças do governo também afetam as salas de cinema
Além de todo o lastro de destruição na cadeia produtiva, a cadeia exibidora também está na mira dos planos de governo em desmontar toda a estrutura saudável.
O Programa de Apoio ao Pequeno Exibidor tinha uma previsão de receber R$200 mil pela Ancine. No entanto, ao fazer o pedido para o Ministério da Economia, a pasta reduziu a verba para apenas R$10 mil.
Você consegue se sustentar por um ano inteiro com apenas R$10 mil? Pois é, nem as salas de cinema. E aqui vale a reflexão sobre a diferença de espaço, tratamento e recursos que nosso complexo de salas possui contra o mercado estrangeiro extremamente impositivo para os lançamentos.
A falta de recursos afeta empregos, manutenção da estrutura e um maior acesso à cultura, afinal, as pequenas salas de cinema passaram a existir em cidades que nunca receberam uma sala antes na história do Brasil.
Tudo isso, além do ódio pela cultura e diversidade, é a conclusão do pacto em tornar o Brasil novamente colonial, onde somente o mercado norte-americano tem vez, explorando recursos e investindo bem longe daqui.
E não vamos sequer entrar no mérito da regulação do streaming, que nem nasceu e já está afetada por essas ameaças.
PS: todas as informações aqui expostas podem ser consultadas em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/orcamentos-anuais/2023/ploa/Volume4Tomo2MTur.pdf e https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/orcamentos-anuais/2023/ploa/Volume1B.pdf