Crítica: A Órfã 2 – A Origem
A Órfã 2 – A Origem
Direção: William Brent Bell
Roteiro: David Coggeshall
Elenco: Isabelle Fuhrman, Julia Stiles, Rossif Sutherland, Hiro Kanagawa, Matthew Finlan, Samantha Walkes
Sinopse: Nesta prequela ao filme original de 2009, depois de orquestrar uma brilhante fuga de uma clínica psiquiátrica da Estônia, Esther viaja para os Estados Unidos se passando pela filha desaparecida de uma família rica que procura uma menina por quatro anos. Após ser acolhida pela nova família, luxo e uma psicóloga, “Esther” começa a mostrar suas reais intenções com o pai e a mãe “biológicos”. Esther começa a ser vigiada por um detetive, que fará tudo para mostrar à família que a menina não diz ser quem é de verdade, colocando em risco a nova identidade da órfã. No entanto, surge uma reviravolta inesperada que a coloca contra uma mãe que protegerá sua família da ‘criança’ assassina a qualquer custo, mesmo que signifique sua própria morte e a de todos.
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À parte de sua qualidade como eficaz suspense, o primeiro A Órfã (dirigido por Jaume Collet-Serra) ficou marcado na cultura popular por sua reviravolta: a inquietante personagem-título que aterrorizou Vera Farmiga e sua família no filme de 2009 não era uma criança de 9 anos chamada Esther – mas sim Leena, uma mulher adulta de 33 anos com um tipo raro de nanismo. Essa reviravolta era o que elevava e condenava o primeiro filme em proporções quase equivalentes. A revelação chocava e ultrajava, mas, diluído o suspense, o que restava era a atração da encenação – a vilã, afinal, era interpretada por Isabelle Fuhrman (excelente), que tinha 10 anos na vida real.
Foi essa revelação, também, que provavelmente propagou o boca-a-boca do filme para além de seu sucesso comercial nos cinemas e adiante no mercado home video, o que elevou sua popularidade, que permanece até os dias de hoje. Não é de se surpreender, no entanto, que o filme receba, em 2022 – 13 anos após seu lançamento – uma sequência, este A Órfã 2 – A Origem. Mas como a sequência poderia funcionar? Além do final definitivo para “Esther” no filme de Collet-Serra, Fuhrman se encontra com 25 anos. O caminho, como na maioria destas produções em que não há espaço para seguir para frente, é pela via do prelúdio. Além da razão de existência puramente mercadológica, William Brent Bell e David Coggeshall, consecutivamente diretor e roteirista desta continuação, subvertem as expectativas intra e extra-filme. Se o truque do primeiro A Órfã residia-se na reviravolta da idade de Esther e seu jogo teatral de encenação, A Órfã 2 faz do teatral e da encenação sua razão de ser.
Isso se imprime na direção de Bell (distante da minuciosidade de Collet Serra, mas competente na proposta adotada), algo que vem já nas primeiras cenas. No primeiro filme, acompanhávamos Esther pelos olhos da mãe adotiva, algo que intensificava a estranheza da vilã, vista como intrusa. Quando o Bell e seu diretor de fotografia Karim Hussain se comprometem a acompanhar, aqui, as ações do ponto de vista de Esther já nos minutos iniciais de A Órfã 2, fica evidente a virada de perspectiva, uma vez que não há mais mistério em relação à idade daquela “garota”: Esther deixa de ser antagonista para virar protagonista – portanto é essencial que acompanhemos seus esforços para escapar da instituição psiquiátrica na qual se encontrava aprisionada; estamos literalmente ao lado da personagem. Mais do que isso, a presença de Julia Stiles (sempre ótima) como a matriarca da mais nova família “adotada” por Esther, e a eventual reviravolta que transforma a matriarca em vilã, subverte ainda mais as expectativas e aumenta, sob a ótica de uma vilania maior de sua rival, uma espécie de empatia distorcida por Esther, que se torna, nesse cenário, nossa mocinha.
Essa subversão e as mirabolantes reviravoltas vistas aqui não funcionariam se o filme possuísse a mesma abordagem solene do primeiro A Órfã, que, mesmo sacrificando, no final das contas, grande parte de seu potencial como estudo dramático da perda ao abraçar o mirabolante, optava por levar tais situações a sério. A Órfã 2 é um filme que possui consciência do ridículo de suas situações, e se diverte com isso. Esse desarme de expectativas acontece de várias formas, principalmente em como o roteiro de Coggeshall ameaça seguir um desenrolar da trama semelhante ao primeiro, apenas para virar essa previsibilidade em si mesma e investir num filme muito mais interessante de jogos de poder e teatro de aparências. Se o farsesco teatro por parte de Esther no primeiro filme era construção essencial da personagem, o que A Órfã 2 faz é estender esse teatro, essa farsa, não só entre Esther e a nova matriarca para com os outros personagens da história, mas também entre si mesmo e o público.
Ter isso em mente é essencial para que este filme funcione, e para que o deixemos funcionar. Um exemplo claro e literal desse teatro é a aparência de Esther. A protagonista deveria ser dois anos mais nova que no filme original, mas é difícil esconder o fato de que Fuhrman não parece mais aquela garota de 9 anos. Com um orçamento mais baixo que não permite tecnicas de rejuvenecimento facial via computação gráfica mais elaborados, Bell deve recorrer às velhas tecnicas do próprio cinema, como dublês de corpo, jogos de câmera e perspectiva. Se torna, inclusive, curioso que frequentemente acompanhemos a protagonista de costas em primeiro plano enquanto a ação transcorre a sua frente no quadro, já que, além de esses planos servirem como uma forma de utilizar a dublê de corpo de Fuhrman para que se tenha uma escala correta da personagem com o todo ao seu redor entre as trocas de atriz e dublê, eles servem também para cimentar o protagonismo de Esther.
Ainda que existam esses esforços para fazer com que Fuhrman pareça aquela garota do primeiro, não se pode dizer, exatamente, que Bell está preocupado obsessivamente com a verossimilhança. O diretor parece mais se divertir com as possibilidades de desafiar o olhar do espectador nesse teatro lúdico do que esconder a diferença entre dublê e Fuhrman, no qual se torna mais divertido perceber o momento em que ocorre a troca de atrizes do que mascará-los. Se tudo faz parte de um de um acordo consciente entre filme e público, por que não fazer as pazes com a farsa? É o que A Órfã 2 propõe, e as comparações feitas entre este prelúdio e o famoso seriado mexicano “Chaves” (no qual adultos interpretavam crianças) por parte do público se tornam certeiros mais por um lado positivo do que como um demérito, uma vez que entrávamos na brincadeira e aceitávamos o transmorfismo corporal – e inclusive as trocas de papeis – de Chaves, Quico e Chiquinha sem questionamentos. O fato desse prelúdio se caracterizar como um terror não muda essa noção.
Longe de ser um esforço puramente cerebral, esse divertido “terrir” abraça a descomplicação, e nunca deixa de se divertir consigo mesmo e se atentar apenas ao prático, a o que favorecerá os jogos de poder que residem na encenação de mãe e filha que parecem perfeitas uma para a outra, reproduzindo, agora, essa dinâmica juntas, passando por cenas como aquela em que a música Maniac de Michael Sembello toca no carro enquanto Esther dirige, culminando na sensacional sequência da casa pegando fogo, longe de seguir as leis da física e abraçando o teatro de vez. A Órfã 2 – A Origem se revela, então, um exercício muito consciente que procura desafiar o olhar, no meio de um gênero que frequentemente recorre às explicações para validar a verossimilhança de seu mundo. No mundo teatral desta sequência/prelúdio, tudo que importa é o faz-de-conta.