Crítica: Marte Um
Se tem um sentimento que todos nós brasileiros compartilhamos nos últimos anos, esse sentimento é a desesperança. Nós, que sempre tivemos muita fé em tudo, hoje nos vemos descrentes. Não acreditamos mais nas instituições, não alimentamos mais pensamentos em torno de grandes mudanças e revoluções, deixamos de ter fé até em nós mesmos. Andamos completamente perdidos e inertes, esperamos o tempo passar. Não raro, nos vemos procurando amparo nos pequenos momentos, buscando consolo na nostalgia que ainda persevera, como um amigo distante que há anos não vemos e esperamos retornar. O novo filme de Gabriel Martins é esse amigo distante, Marte Um nos abraça e nos reapresenta a um Brasil de sonhadores.
A história, que tem como foco uma família negra periférica de Minas Gerais, trabalha os sonhos e as dificuldades dos personagens que vivem dilemas comuns a milhões de brasileiros. Na família, uma mãe que tenta de tudo para manter a família unida e feliz mesmo sentindo que o universo conspira contra ela, um pai que trabalha à exaustão para ver os filhos prosperarem como não conseguiu, um filho que sonha em poder ir atrás dos próprios sonhos como astrofísico e uma filha que almeja a liberdade de ser e amar quem quiser. Nos espaços suburbanos do Brasil, nasce uma linda história da qual somos testemunhas e que nos identificamos desde o primeiro momento: o anúncio na televisão sobre o resultado das eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro irá se tornar o presidente do país.
Há um tempo atrás, em um ensaio chamado “A linha tênue entre a ficção e a não-ficção com Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho”, comentei que para mim “um cineasta ideal sempre foi aquele que mais soubesse valorizar os detalhes e que mais soubesse fazer de coisas muito simples um momento grandioso”. Até hoje, a minha opinião nunca mudou. Ainda acredito, pessoalmente, que os melhores cineastas e os melhores filmes são aqueles que sabem tornar o prosaico algo extraordinário. Apesar de na ocasião estar me referindo especificamente a Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami e a habilidade que ambos possuíam em enxergar no mais comum algo que valeria a pena ser contado, após Marte Um, é seguro dizer que o mesmo se aplica a Gabriel Martins.
Existe nesse filme e no cineasta uma vontade imensa de tornar o hodierno em algo incrível. A atenção aos pequenos detalhes, de diferentes pessoas e vivências, torna esse filme e essa forma de arte a potência que é. Assim como esses grandes cineastas para a história do Cinema, o diretor também enxerga beleza e validade em algo que não seria retratado, sequer notado no dia a dia, algo que caso não existisse filme, poderia passar batido, mas jamais deixaria ser menos belo. Sua sensibilidade transparece ao longo de vários momentos da trama, desde a cena em que Deivid resolve encarar seus medos e cai da bicicleta em uma cena em que parece querer alcançar o sol, até o momento em que Eunice segura na mão de Joana e a câmera faz um travelling lento, sem cortes, em um zoom in bem perto do rosto dos pais, permitindo que nós percebamos a reação mista de choque e decepção de ambos naquele momento.
Em cada escolha, tudo existe para maximizar o sentimento. Seja a luz azul refletindo nas peles negras dos irmãos no diálogo sincero e aberto da madrugada (uma cena que só vi tão bonita e com tanta sensibilidade assim em filmes como Moonlight, por exemplo), ou na cena final quando todos se deitam no quintal para observar o céu, você se emociona pela honestidade de tudo aquilo. Não existem grandes reviravoltas ou um drama muito intenso, Marte Um consegue emocionar puramente pelos seus detalhes. É onde, acredito eu, mora toda a maestria do filme e a universalidade do tema que pode se aplicar não apenas a uma realidade estritamente brasileira, mas para todo o mundo onde haja pessoas que ainda precisam sonhar com dias melhores e com uma vivência familiar cheia de afeto e admiração.
É curioso notar, ainda, que Marte Um tem elementos que remetem não apenas a movimentos cinematográficos como o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo, como se fundamenta nesse naturalismo existente dentro do Cinema. Seus diálogos parecem acontecer da forma mais próxima do real possível, de forma tão espontânea quanto um filme de Richard Linklater (Trilogia do Antes, Boyhood) ou de Gabriel Mascaro (Boi Neon). É exatamente dessas escolhas modernas (de uma fotografia mais crua, uma trilha sonora mais popular, movimentos de câmera a maior parte do tempo mais próximos com os que podem ser feitos pelo olho humano) que nasce a proximidade necessária ao espectador para se conectar com aqueles personagens e, então, se emocionar com a história. Embora adote um viés fantasioso vez ou outra, na forma como algumas situações vão acontecendo com a personagem Tércia, o filme se mantém majoritariamente focado em pequenas e ordinárias situações do dia-a-dia, daquelas que podem acontecer a qualquer pessoa.
Por tudo isso, Marte Um vem resgatar o tão falado conceito do Cinema como um espelho da realidade. É identificável e é interessante justamente pela sua fácil identificação. Não é algo extraordinário, mas é muito bom justamente por não tentar ser. Quando esse brasileiro desesperançoso que passa pela crise econômica e política profunda do país assistir a Marte Um, vai entender instantaneamente que existe uma história parecida com a sua sendo contada em tela de cinema. É, em poucas palavras, como resgatar um pouco da nossa identidade através das nossas dores e das nossas conquistas também. Ter sobrevivido nesses últimos anos tem sido sinônimo de vitória e, assim como o final de Marte Um, olhar para fora da Terra tem sido nosso jeito mais próximo de ter esperança para, enfim, poder sonhar de novo. Junto das estrelas.