Regulamentação do streaming na França: frescura ou proteção?
Nos últimos dias, a notícia sobre a decisão da Disney suspender a exibição de “Mundo Estranho” nos cinemas da França deixou a internet surpresa, o que levou muitos a debater a questão em um viés tido como “frescura”. A realidade, entretanto, tem bem mais camadas do que isso.
A regulamentação do streaming é uma pauta que é debatida no meio audiovisual desde pelo menos 2015. De lá para cá, estudos foram feitos e decisões que impactaram o mercado foram tomadas.
Em 2018, o parlamento da União Europeia colocou a possibilidade da regulamentação em sessão e aprovou, por ampla maioria, a necessidade de exigir um subsídio das plataformas ao audiovisual de cada país-membro e uma reserva no catálogo de cada serviço.
Os 30% de cota de tela nos catálogos surpreendeu até os mais céticos que, a esta altura do campeonato com a formação de monopólios de mídia, achavam impossível iniciar uma regulamentação do serviço cobrando quase a mesma porcentagem que a TV em muitos países europeus.
Como forma de deixar o tema democrático, a União Europeia deixou os países livres para debaterem e aprovarem suas próprias regulamentações com base nos subsídios e cotas de tela que poderiam fazer sentido para cada realidade, e assim foi feito.
Com um prazo inicial de 21 meses – terminados ao fim de 2021–, diversos países do bloco colocaram o tema em discussão e aprovaram suas bases dentro de uma atualização e fortalecimento dos seus marcos regulatórios de mídia, o que para o Brasil pode ser interpretado como a ampliação da Lei da TV paga.
Por incrível que pareça (ou não), a regulamentação aprovada pela França – que tem em sua história cinematográfica o papel de percursora da política de cota de tela – é a mais completa e inspiradora no setor audiovisual. Mas, o que a faz tão especial?
A França tem um enorme apelo na proteção das salas de cinema. Com a pandemia, o setor exibidor europeu sofreu como um todo, principalmente em tentar reconquistar o espectador que se acostumou as praticidades do streaming.
Entretanto, um dos maiores mercados de cinema do mundo não se deu por vencido. A birra com filmes da Netflix em Cannes já anunciava que o setor francês não iria aceitar uma regulação “para boi dormir”.
Muito antes de sair a aprovação, diversos agentes de mercado e distribuidores já estavam reclamando sobre os baixos ganhos com licenciamento de obras para as plataformas, muito inferior ao que a TV local consegue investir.
Como consequência, além de garantir os investimentos necessários, a segurança da preservação dos direitos patrimoniais aos autores, a França também precisou se preocupar com a divisão das janelas prioritárias.
Talvez para o Brasil, a ideia de ter um espaço de 12 meses entre o lançamento nos cinemas e no streaming não faça sentido algum, afinal, para quem está na bolha dos grandes centros urbanos e utiliza o sucesso das plataformas nas redes sociais para afirmar que o futuro é hoje, não se dá conta de que o consumo da TV ainda é imponente, especialmente na Europa.
Na mesma semana em que rumores começam a ser levantados sobre a possibilidade da Netflix comprar a Roku para focar no mercado de Ads, a Disney arruma uma briga para fazer valer suas vontades mesmo que isso se torne contra toda a legislação vigente.
O relacionamento tóxico perpetrado pelos grandes estúdios norte-americanos já incomoda mais da metade do mundo. A reserva de salas e a exclusão de filmes locais da tela grande tem tornado quase impossível o trabalho da distribuição.
Se o problema é talvez um prejuízo para o consumidor, a questão é totalmente simples de ser resolvida: o filme original Disney pode estar no streaming da empresa quando ela bem entender que deve ser lançado, não sendo afetada por nenhuma política que assumiu a participação e acabou de injetar mais de € 300 milhões para novas produções nacionais.
O caminho idealizado e vigente da França é estudado por outros países incansavelmente, principalmente pela Itália, que acabou de ter um grande desentendimento com a Netflix no manejo do lançamento do longa “A mão de Deus” e deve, em breve, seguir o mesmo caminho dos franceses quanto a divisão das janelas de exibição.
De fato, uma política dessa magnitude não faria sentido para o mercado brasileiro, principalmente pelo fato de termos tido nossas políticas de incentivo a formação de público interrompidas com a tragédia política que vivemos desde o golpe bem sucedido do Temer.
No entanto, estamos bem longe de não ter o direito de debater a regulação do streaming. A legislação é, antes de qualquer outra coisa, uma proteção de suma importância para a economia criativa do país, bem como a preservação dos direitos e ganhos de cada trabalhador(a) audiovisual envolvido(a) em obras para as plataformas.
O grande benefício do consumidor começa com a possibilidade de construir um mercado competitivo de verdade, que garanta a contratação em larga escala desses trabalhadores, devolva recursos para o país e deixem as obras brasileiras performarem com destaque em seus catálogos.