Crítica: Tori et Lokita – Festival de Cannes 2022
O contexto de crise migratória profunda na Europa, que teve seu auge em 2015, tem provocado uma série de discussões de cunho político e econômico no continente. Se por um lado vários países da União Europeia são a favor de legislações mais rígidas a fim de impedir a entrada dessas pessoas, que geralmente fogem de conflitos armados em seus países ou mesmo de uma situação de pobreza extrema, existem aqueles que são mais flexíveis e que permitem a entrada de imigrantes sob um ponto de vista humanitário. Só na França, estima-se que ao menos 9% da população do país é formada por imigrantes, mas quem são eles?* Assistimos nas televisões, lemos nos jornais, navegamos pelas notícias da internet, mas não sabemos quem eles são. Afinal, quais são os rostos, sonhos, desejos e medos dessas milhões de pessoas que adentram um novo país e se adequam a uma nova cultura para recomeçar uma vida do zero? E o que acontece com essas pessoas depois que adentram o país?
Nas estatísticas, em notícias esparsas, não existe humanidade. Friamente, nos acostumamos a ver pessoas sendo transportadas como animais nas reportagens televisivas, e sendo assassinadas antes mesmo de chegarem em terra. Por esses e muitos outros motivos, incluindo o avanço assustador das políticas antiimigratórias na Europa como um fruto da extrema direita, que dar voz a esse assunto e por um rosto nessas pessoas é algo muito relevante, ainda mais quando bem feito. E é isso que os irmãos Dardenne, por meio de Tori et Lokita, ao menos para mim, sucedem em fazer. Ainda que tenham que recorrer à literalidade dos diálogos e do seu desfecho para transmitir a ideia.
Na cena de abertura, já estamos diante de uma cena tensa, onde Lokita enfrenta um longo interrogatório sobre seu irmão Tori que é interrompido por uma crise de pânico da protagonista. Tudo indica, desde aquele início, que estamos diante de um filme que não esconde seu realismo: tanto na forma de manusear a câmera (abordagem naturalista, câmera na mão, pouca presença de cortes), quanto na maneira com a qual aborda suas principais temáticas como assédio, tráfico, exploração, corrupção e racismo. Embora o foco principal do filme seja a jornada e o amor fraternal entre os irmãos, a obra sabe introduzir todas essas problemáticas bem o suficiente para criar impacto em nós.
Poucos momentos em Cannes foram tão sensíveis quanto os de Tori consolando Lokita após o abuso sexual que a irmã sofre. Nas palavras do irmão, repetidas vezes, Lokita escuta o que toda vítima de abuso sexual, no fundo sabe, mas carece de certeza: não foi sua culpa. A sabedoria do irmão mais novo e o relacionamento dos dois é o que nos faz torcer até o final pelos objetivos e sonhos que eles compartilham (mérito principal das atuações impressionantes dos dois), mesmo sabendo que não existe nada nessa história que não grite no mais alto e bom som a palavra tragédia. É impossível não sentir a onda de tristeza que vai nos atingindo a cada cena, mas de algum modo torcer por eles parece inevitável. A cada situação de medo, nossa reação é pedir para que eles fujam o mais rápido possível. Porque a tensão é palpável na construção das cenas, e a nossa conexão estabelecida com os personagens também.
Com a experiência que os Dardenne possuem na direção, o filme consegue transformar a canção de ninar italiana que nos diverte no começo, cantada pelos protagonistas em uma situação de descontração e alegria, em choro e desesperança. Ao fim, é quando lembramos que em Tori et Lokita, assim como na vida real, não há sonho. Todos os anos, cada vez mais imigrantes serão “qualquer um”, atravessando o outro lado do oceano em direção a um novo local que muitas vezes lhe é cruel, onde irão tentar uma ideia de ascensão social cada vez mais ilusória dentro de uma sociedade fortemente marcada pelo caráter sucessório que tem o capital – que por sua vez conserva seu mais alto púlpito com folga há mais anos do que gostaríamos de admitir. Tori et Lokita é um filme cuja relevância social é inegável, mas que não depende apenas disso para se sustentar e prova mais uma vez a excelência dos diretores naquilo que sabem fazer de melhor, que é o cinema na sua forma mais natural e fascinante.