Crítica: Decision to Leave - Festival de Cannes 2022
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Crítica: Decision to Leave – Festival de Cannes 2022

Um dos primeiros filmes que me fizeram ter certeza do meu amor pelo cinema foi Oldboy (2004). Na época, não conhecia muito sobre os termos técnicos, linguagem ou história do Cinema, mas curiosamente tive a certeza imediata de que havia acabado de assistir a um dos filmes mais interessantes da minha vida. O impacto, lembro bem, não se deu apenas pelo chocante e memorável plot twist. Lembro de ficar impressionada com as bem ensaiadas cenas de ação, a instigante trama criminal, os personagens incomuns e a comicidade em constante contraste com a violência brutal. Foi então que começou minha história de amor com o cinema sul-coreano, tamanho foi o impacto do diretor em mim. Após Oldboy, jamais esqueci do nome de Park Chan-wook.

Anos depois, em um contexto completamente diferente da minha relação com o cinema, às 18h de uma terça-feira chuvosa em Cannes, eu tinha um encontro marcado com o diretor cujo nome eu tive dificuldade em esquecer, para assistir ao Decision to Leave, filme que marca o retorno de Park Chan-wook para as telas desde A Criada (2016) e, muito justo, era um dos mais aguardados do Festival de Cannes de 2022. Tamanha era a expectativa que no dia da premiére, uma segunda-feira, do lado de fora das salas, pessoas seguravam folhas de papel A4 pedindo por convites de última hora e filas quilométricas começavam a ser formadas do lado de fora do Grand Theatre Lumiére. Nos meus pensamentos, uma pergunta não parava de voltar: depois de filmes como Oldboy e A Criada, é possível que Chan-wook nos presenteasse com mais uma obra-prima? Poderia um raio, no cinema, cair duas vezes no mesmo lugar?

Confesso que fui martelando essas perguntas na minha cabeça durante toda a longa fila, mas assim que Decision To Leave começou esqueci com o que eu acredito que tenha sido o tempo máximo de dez minutos. De repente, eu já não estava mais preocupada com o filme e suas repercussões, eu estava dentro dele, curiosa com história de um assassinato (ou seria acidente?) que leva o protagonista a se deparar com uma figura misteriosa e apaixonante que é, ao mesmo tempo, sua suspeita. Não tive vontade ou mesmo a intenção de pensar em mais nada pois a única coisa que importava para mim, durante aquelas duas horas e vinte minutos, era a história de amor e crime melodramática em estilo neo-noir de Chan-wook.

É com esse domínio técnico que o diretor reforça saber capturar a atenção do espectador como poucos, logo nos primeiros minutos. Não muito diferente do estilo de alguns dos seus filmes anteriores, como Oldboy por exemplo, Decision to Leave também se inicia com uma incógnita e, lentamente, nos alimenta com informações. Para nos manter na história (e linkar diferentes momentos), Chan-wook vai utilizar recursos de flashbacks (não da maneira comum, de uma forma bem mais especial) e jogos de montagem geniais que nos convidam a brincar de quebra-cabeça, onde cada pedaço será concedido como uma espécie de recompensa pelo nosso bom-comportamento, que é, nesse caso, nossa atenção indivisível ao filme. Assim, não nos sobra tempo para racionalizar a sua duração um pouco extensa, já que o diretor sabe construir um filme dinâmico, onde novas informações são avalanches que não deixam espaço para tédio.

Seja do ponto de vista dos olhos de um homem morto ou de dentro da tela de um celular, o diretor também irá inovar em sua forma de nos impressionar com suas mise-en-scène. Temos a sensação de estarmos dentro dos objetos, pode ser de uma bolsa, de um aparelho celular, de um olho, qualquer lugar. Observamos tudo e somos testemunhas de um amor impossível, cujas fundações são fadadas ao desastre. Dentro desse filme, frequentemente somos a terceira pessoa observadora de determinada ação. Em determinado momento, observamos o protagonista, observar seu objeto de desejo, que por sua vez está observando uma idosa. Todas essas dimensões do exercício de observar e contemplar o comportamento de outrem leva o voyeurismo inerente ao Cinema a um nível de gênio.

Atenta aos detalhes, a câmera em Decision to Leave conta suas próprias histórias e, sozinha, realiza um estudo de personagem tão profundo que nenhum diálogo poderia substituir. O protagonista, por exemplo, sempre limpando excessivamente sua mesa de trabalho, organizando pequenos objetos e amarrando com frequência seus cadarços (mesmo com os sapatos no mar), nos revela que estamos diante de um homem perfeccionista, extremamente técnico e ético.

O seu romance com a mulher que era o alvo de suas principais suspeitas para ele se trata de uma imensa transgressão e, quando suas maiores virtudes passam a ser uma farsa, Hae-jun não se reconhece mais. Enquanto isso, ela está no outro pólo dessa relação e representa o rompimento do equilíbrio dele, a desobediência e ausência da lei. Uma espécie de Heat (1995), sem toda a ação de Mann. É o mesmo jogo de gato e rato desafiando os limites da ética. No filme de Chan-wook, ela é anarquia, enquanto ele é a ordem. E isso, como já vimos com Al Pacino e De Niro, é claro, jamais pode terminar bem.

A retratação desse amor proibido, entre duas forças completamente opostas, ganha uma proximidade inquietante com um dos maiores clássicos românticos do cinema, Amor à Flor da Pele (2000). Assim como Kar-wai, Chan-wook também nos apresenta uma história de amor controversa a qual nos ganha pelos pequenos afetos e pela atenção da câmera aos mais singelos detalhes. A diferença aqui é que ao invés de desenvolvermos uma ideia sobre o dever de fidelidade ou não daquele casal com seus respectivos cônjuges, em Decision to Leave a controvérsia vive em uma questão mais voltada à ética do trabalho desempenhado pelo protagonista. Deveria um detetive se envolver com uma suspeita? E mais, deveria ela confiar que ele não irá capturá-la a qualquer momento?

Dividido em duas partes, montanha e mar, o filme vai ficando cada vez mais livre e os espaços são cada vez menos cortados em tela. O que é irônico porque é quando a dinâmica do relacionamento dos personagens deixa de estar estritamente relacionada ao crime inicial que tudo vai ficando mais perigoso e extremo, até culminar em um final chocante – e contraditoriamente tão poético e pacífico ao mesmo tempo. A neve nas montanhas em contraste com os cadarços sendo amarrados no mar. A noite fria que tem declarações que aquecem o coração, e um dia ensolarado que anoitece com pesar. A pura presença desse contraste que Chan-wook gosta de usar, servindo a uma narrativa de amor entre opostos.

Afinal, quando as diferenças não são superáveis, será amar ir ou ficar? A decisão de ir ou de ficar, a depender do relacionamento cultivado, é a escolha mais difícil de todas. Decision to Leave é um filme sobre amor, crime, propósito, perdão e sofrimento, também. Se apenas fosse possível que todos os filmes fossem tão bem pensados assim, viveríamos em uma utopia inesgotável onde o Cinema estaria sempre sendo realizado com toda a potência que as imagens devem ter. Frames que falam mais de mil palavras, roteiros que se transformam em movimento, da melhor forma possível.

A cinéfila de outrora que viu Oldboy e se apaixonou pelo cinema sul-coreano, hoje tornou-se uma crítica que jamais poderia imaginar poder conferir e escrever tão felizmente sobre um filme marcante como esse, ainda mais na maior celebração da sétima arte no mundo. Se não o melhor, Decision To Leave é, ao menos, um dos melhores filmes que já passaram por todas as 75 edições do Festival de Cannes.

  • Nota
5

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