Crítica: O Peso do Talento
O Peso do Talento
Direção: Tom Gormican
Roteiro: Tom Gormican, Kevin Etten
Elenco: Nicolas Cage, Pedro Pascal, Lily Mo Sheen, Ike Barinholtz, Alessandra Mastronardi, Tiffany Haddish, Neil Patrick Harris, Sharon Horgan
Sinopse: Em O Peso do Talento, sofrendo por não conseguir mais papéis como antes, não ter mais a fama como antes, estando insatisfeito com a vida e prestes a pedir falência, Nicolas Cage chega no fundo do poço e se mete em uma aventura que ultrapassa os seus papéis feitos. Após correr atrás de Quentin Tarantino implorando um papel em seu novo filme e não obtendo sucesso com o diretor, Cage acaba aceitando US$ 1 milhão, como sua última fonte de renda. O dinheiro vem de Javi (Pedro Pascal), um superfã e fanático pelo ator, mas extremamente perigoso. As coisas tomam um rumo inesperado quando Cage é recrutado por um agente da CIA (Tiffany Haddish) e forçado a viver de acordo com sua própria lenda, canalizando seus personagens mais icônicos e amados na tela para salvar a si mesmo e seus entes queridos. Com uma carreira construída para este momento, o experiente ator deve assumir o maior papel de sua vida – ele mesmo.
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Um dos atores mais aclamados do cinema, Nicolas Cage se encontra num momento muito particular de sua carreira. Nas últimas décadas, Cage foi de super-astro a esquisitão excêntrico, a ex-astro que aceita qualquer trabalho para pagar dívidas, apenas para ser redescoberto como astro, dessa vez de um cinema independente moderno como ícone cult. No entanto, das várias alcunhas empregadas ao vencedor do Oscar, a mais curiosa seja a de meme de internet. A energia habitual das atuações anti-naturalistas do ator (que recentemente falou sobre como adota um método de atuação chamado “xamanismo noveau”), expressionistas e exageradas, rende até hoje compilações de melhores momentos das caras e bocas, das inflexões bizarras e de sua linguagem corporal em cena. No entanto, da adoção de Cage pela internet como um meme, denota-se uma espécie de rebaixamento do ofício do ator, que é renegado à estampas de camiseta com suas caretas, e argumentos rasos sobre a canastrice de um ator adepto da experimentação acima de tudo. Assim, uma geração mais jovem, criada na era digital dos anos 2010, já pode ter visto diversos supercuts de filmes do astro como O Beijo do Vampiro e criado percepções sobre o trabalho de Cage que não refletem o trabalho e o contexto de sua performance, justamente porque dos memes extraem-se apenas essa persona, esse simulacro, tal qual um gif da Gretchen ou da Tulla Luana. Poucos atores são tão icônicos ao ponto de permanecerem por tanto tempo no imaginário popular, e essa mitificação de Cage deu lugar a uma espécie de subgênero cinematográfico “filmes do Nicolas Cage”, realizados especialmente como veículos para que Nicolas Cage seja Nicolas Cage.
A metalinguagem máxima dessa proposta vem neste “O Peso do Talento”, um filme sobre Nicolas Cage onde Nicolas Cage finalmente interpreta a si mesmo, numa versão ficcional, chamada aqui de Nick Cage. Após uma série de fracassos comerciais e rejeições de papéis por seu estilo pouco convencional de atuação, Nick vê sua relação com a filha (Lily Mo Sheen) e a ex-esposa (Sharon Horgan) desmoronar, junto de suas finanças e seu respeito como ator. Cage então aceita comparecer à festa de aniversário de um fã, o milionário Javi (Pedro Pascal), pela quantia de 1 milhão de dólares. Após viajar até a ilha na qual o milionário mora, Nick é contatado pela CIA para que investigue Javi, suspeito de traficar armas. O ator se vê numa aventura digna de seus filmes de ação, onde deve recuperar seu mojo enquanto revisita seus personagens através do adorável – porém misterioso -Javi.
O Peso do Talento é um filme que celebra a carreira e persona de Cage, mesmo que se disfarce, pontualmente, de comentário ácido sobre o egocentrismo de Hollywood e seus atores. A presença tímida do escárnio na autorreferência faz um favor ao resto do filme e impede que ele se junte a obras recentes e autocríticas que parecem ter vergonhas de si mesmas ou utilizam essa metalinguagem como mea culpa. Desde os minutos iniciais, o escritor Kevin Etten e o diretor Tom Gormican (que co-roteiriza) não escondem suas paixões por Cage, como evidenciado nas várias citações a projetos anteriores do ator (de A Outra Face a Con Air, de Mandy a Os Croods). O filme ganha muito com a presença do alter ego Nicky, uma versão mais jovem e insana de Cage (inspirada numa antológica aparição no talkshow norte-americano Wogan) – interpretada também pelo ator, numa versão rejuvenescida através de computação gráfica – que frequentemente é invocada através de alucinações do astro e rende algumas das melhores sequências do longa, principalmente por não estar presente apenas como replicação de um meme.
A presença de Nicky evoca não apenas Birdman – outra obra sobre temas semelhantes de um ator em crise tentando se encontrar e que também alucinava com sua surtada versão mais jovem, como também (e mais diretamente) JCVD, joia não descoberta na qual Jean Claude Van Damme interpreta ele mesmo, numa decadência parecida, que também é inserido contra a própria vontade em um cenário de filme de ação. Se até Quero Ser John Malkovich é evocado nas brincadeiras com a percepção do público em relação a sua persona excêntrica, O Peso do Talento renega se adentrar na densidade dramática e conceitual que as obras citadas acima faziam, nas discussões de ego, mídia, arte e a entrega do ator. O filme estrelado por Cage poderia muito bem discutir de forma aprofundada o status de meme ao ponto da descaracterização citada no início deste texto, mas ele encerra a discussão bem cedo no longa quando o ator e o filme escolhem para si encarnar a farsa. É como se O Peso do Talento vislumbrasse se tornar um filme talvez mais interessante, mas se contentasse com o caminho mais seguro – porém não menos divertido.
Esse caminho mais seguro o aproxima de um filme mais protocolar no cinema atual de fanservice e autorreferências, mas O Peso do Talento possui o diferencial do combo Cage + Pascal, no qual até momentos como aquele em que Javi mostra sua “sala de troféus” com memorabília dos filmes da carreira de Cage se torna adorável e engraçado. A dinâmica dos dois é o verdadeiro triunfo do filme, que se beneficia quando se atém a cenas em que ambos conversam sobre filmes e se divertem (a sequência na qual os dois ingerem alucinógenos e pegam uma bad trip repleta de paranoia é sensacional e diverte tanto pelo carisma e entrosamento de Cage e Pascal, quanto pelo uso esperto de gags visuais por parte da direção de Gormican), do que pela insistência na trama que envolve a CIA e as sequências de ação, conduzidas de forma burocrática – o que indica que Gormican sabe onde está o coração de seu filme.
O Peso do Talento é o mais novo exemplo de uma série de filmes metalinguísticos onde o protagonista interpreta a si mesmo, e ele não possui a ambição de alguns, nem mesmo a autorreferência emburrecida e exagerada de outros: o filme aceita o lugar econômico, mas de sucesso, da dupla dinâmica – aqui o ídolo e o fã – se envolvendo em confusões, e se aproveita da presença magnética de Nicolas Cage que transcende, quase sempre com sucesso, qualquer malefício do fanservice. Nem todos os filmes possuem o privilégio de ter Nicolas Cage.