Crítica: Benedetta
Benedetta
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke, Paul Verhoeven
Elenco: Virginie Efira, Daphné Patakia, Charlotte Rampling, Lambert Wilson
Sinopse: Século XVII. Benedetta Carlini é uma freira italiana que faz parte de um convento na Toscana desde sua infância. Perturbada por visões religiosas e eróticas, Benedetta é assistida por uma companheira de quarto. A relação entre as duas se transformará em um romance conturbado, ameaçando a permanência das irmãs no convento.
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O cineasta Paul Verhoeven é considerado um dos grandes provocadores do cinema, especialmente por trazer, para filmes tidos como comerciais, características encaradas justamente não-comerciais. Para isso, o cineasta utiliza de sátiras, exploitations e farsas que quase sempre questionam as “boas-maneiras”, seja em forma e estilo, como também fora das telas. E a eficácia dessas sátiras se dá, também, por passarem frequentemente despercebidas por muitas pessoas. Exemplo disso é a aversão inicial de parte do público a filmes como Tropas Estelares e ShowGirls – este último tendo suas qualidades redescobertas aos poucos no decorrer dos anos e mais recentemente por um grupo que o caracterizou como “cinema vulgar”. Essa questão da vulgaridade na forma como o cineasta retrata a violência e o sexo, assim como estes se relacionam com a hierarquia de seus personagens em tela, é utilizada pelo diretor de forma frontal. O que costuma vir é o choque, escancarando tabus e hipocrisias, muitas vezes se apropriando dos mais variados gêneros cinematográficos para esses questionamentos.
Benedetta, mais novo filme do cineasta, chega como o suprassumo de Verhoeven, com toda a polêmica que sua trama evoca: freiras lésbicas, jogos de poder entre as mulheres do convento e com os homens na hierarquia do catolicismo, questionamento da fé e exploração de símbolos. As descrições sensacionalistas o descrevem como ‘’ShowGirls num convento’’. Simplificações à parte, é realmente curioso como existem semelhanças entre as garotas do filme de 95, que se viam numa disputa da “serventia” aos homens no poder para subirem na carreira, e as freiras que vemos aqui, dessa vez com a figura masculina sendo o próprio Deus e seu filho.
Assim, após o prólogo que nos apresenta a protagonista Benedetta (Virginie Efira) ainda criança (vivida nessa idade por Elena Plonka), é curioso como temos uma apresentação que se inicia em uma apresentação nos palcos, desta vez do teatro religioso onde a protagonista tem uma de suas visões com Jesus Cristo. O diretor é eficaz em nunca explicitar a natureza ou veracidade das visões e sonhos experimentados por Benedetta ao decorrer do filme. No entanto, a escolha por retratar essas visões como representações bregas e cartunescas – à beira do satírico – com os figurinos baratos, a visão de Cristo como o estereótipo de traços europeus e até mesmo a violência exagerada de alguns destes sonhos, estabelece uma mentalidade doutrinada pelo catolicismo a encarar as divindades de uma forma quase infantil, fabulesca, teatral por parte de Benedetta.
Esse teatro se estende para as atitudes da protagonista, que se aproxima da Femme Fatale vivida por Sharon Stone em outro clássico do diretor, Instinto Selvagem (1992). Como naquele filme, Verhoeven faz um jogo de gato e rato com o espectador até que as reais intenções de Benedetta sejam reveladas. Até lá, questiona-se as motivações e a o quanto suas atitudes e sentimentos são genuínas. Ao mesmo tempo, o filme é eficaz em evidenciar as burocracias do próprio convento e as prestações de serviço de acordo com hierarquia: não importa se Benedetta tenha se revelado na infância como uma criança sensitiva espiritualmente ou “apta” de acordo com regras específicas para ser aceita no convento; sua permanência no local dependerá de uma negociação monetária, como num escritório ou agenciamento de “modelos”. Até mesmo o fenômeno do stigmata (milagre onde as cinco chagas de cristo são manifestadas fisicamente num indivíduo) é retratado como uma análise onde a veracidade do fato será validada de acordo com os benefícios que o acontecimento trará para o vilarejo e a igreja no qual ocorreu.
Assim, a religião e a fé são retratadas no filme como justificativas e motivações para as atitudes e jogos de poder exercidos pelos seus personagens. É mais uma constante no cinema de Verhoeven: o importante, muitas vezes, são os próprios jogos de poder, independente dos meios utilizados para que ele seja exercido, seja através do sexo, violência ou até mesmo soros que tornam homens invisíveis. O que os personagens do cineasta farão com o poder que possuem? É interessante, então, como as figuras vistas aqui vão de “vilões” a “mocinhos”, de estereótipos usados ora como objeto sexual, ora como fantoches num jogo político, a pessoas com dúvidas e anseios além do unidimensional antes estabelecido. Amante de Benedetta, Bartolomea (Daphne Patakia) é introduzida como um lobo em pele de cordeiro, muito por causa de sua libertinagem (outro exemplo de como o sexo é retratado aqui não só como representação de poder, mas também do profano), mas eventualmente se revela apenas uma manipulada; a Irmã Felicita (Charlotte Rampling, sempre ótima) é apresentada como espécie de carrasca, e depois revela vulnerabilidade trágica.
É entre essas dualidades e teatros que Benedetta se firma como mais um exemplar digno da filmografia de seu realizador, já ciente de que seu nome se associa diretamente com o polêmico, desta vez operando no faz de conta à beira da autoconsciência dessas provocações. Em sua única cena do filme, uma servente grávida do núncio vivido por Lambert Wilson (ótimo no papel) comenta com a irmã Felicita que já está produzindo leite. Coloca, aleatoriamente, um de seus seios para fora e o espreme. Vemos o leite jorrando, enquanto Felicita esboça uma expressão de desdém pela atitude. Verhoeven é ciente do cinema de choques que exerce, às vezes pelo prazer da provocação, pelo prazer da expressão de reprovação de alguns membros público. Cabe ao público, também, encarar esses exibicionismos como gratuitos ou questionadores.