O audiovisual brasileiro arde há anos
Ontem (29/07), mais uma tragédia anunciada ocorreu envolvendo a nossa Cinemateca Brasileira. A notícia pegou algumas pessoas de surpresa, mas a realidade é que essa já era uma bola cantada.
Desde 2020, quando o Governo Federal desistiu de cuidar do patrimônio cultural do país –– mesmo alegando ser Brasil acima de tudo ––, os trabalhadores da Cinemateca emitem alertas fortíssimos sobre a possibilidade de incêndios de grandes proporções. Não demorou tanto tempo assim para uma das contas desse descaso chegar.
No entanto, o abandono da Cinemateca Brasileira está longe de ser o único problema do audiovisual nacional. Desde que fui convidada a iniciar esta coluna no Cinem(ação), e junto a todo o meu trabalho desenvolvido nas redes, busco chamar a atenção para o incêndio que impera silenciosamente em tratativas da Ancine e a regulamentação do streaming.
A paralisação dos recursos de forma criminosa vem desde a presidência golpista de Michel Temer. Existe, até hoje, produtoras que ainda não receberam recursos de projetos que deveriam ter sido executados ainda em 2018.
Parte da minha motivação de começar a falar sobre mercado audiovisual remonta deste tempo. O medo, a incerteza e as “investigações” sem propósito que paralisavam o trabalho de milhares de assistentes de produção em produtoras Brasil à fora.
Eu me incluo no seleto grupo mencionado, e por estar prestando serviços para uma produtora focada em filmes documentais políticos, pode-se imaginar o caos instaurado. Quando resolvi me aventurar por outros lugares, pesou a responsabilidade de informar e alertar, nem que seja um pouco, sobre o que estava por vir. Mas esse texto não é sobre a minha trajetória profissional no cinema.
A internet amanheceu na manhã de sexta em um misto de luto e revolta, principalmente com grandes “influencers” (caberia aqui até muitas outras aspas) completamente omissos e que hoje surfam no hype do caos, do desmonte, da tragédia já tão anunciada.
Hoje não podemos mais fazer nada pela Cinemateca, mas o audiovisual está aí travando lutas importantes e que são igualmente ignoradas por muitos daqueles que se dizem “amantes da sétima arte”, mas nunca se lembram do cinema brasileiro.
Enquanto a Cinemateca ainda corria o eminente perigo de pegar fogo, nosso audiovisual brasileiro já estava ardendo em chamas figurativas, mas ninguém pareceu ouvir tanto assim.
Muito além de uma luta pela regulamentação do streaming, o desgoverno atual tenta desmontar a maior legislação que temos hoje no país, a Lei do SeAC (ou comumente conhecida como Lei da TV paga).
Em um conluio com o Ministério das Comunicações e os grandes conglomerados internacionais de mídia que atuam predatoriamente em nosso país, a desestabilização da lei vem em cima de artigos que proíbem a concentração de monopólio e desautorizam o consenso da Anatel em liberar a oferta de conteúdo online dos canais da TV a cabo.
Hoje a legislação corresponde 90% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), massacrado desde Temer e pisado pelos devaneios de Bolsonaro em achar que sustentaria indicações sem nenhuma experiência no setor dentro de uma autarquia federal.
Também é graças à Lei do SeAC que conseguimos começar a internacionalizar o cinema nacional, demos a oportunidade de vizinhos como Uruguai e Argentina de também seguirem esse curso, caminhamos para frente como o mundo determinou que fosse feito.
Hoje, isso tudo está em chamas, em caos junto a uma pandemia descontrolada, sem resolução, sem auxílio, sem nada. O problema da Cinemateca também é nosso, pelo nosso velho hábito de desistir de assistir a um filme brasileiro para acompanhar um lançamento estrangeiro.
Hoje eu também me sinto só. Parece que, por mais que as pessoas me deem espaços para escrever sobre essas questões, não sou ouvida o suficiente a ponto de conseguir viralizar um problema para encontrar uma solução junto a um Congresso em parte omisso e em parte já exausto de levar porrada.
Hoje levaram parte da nossa memória, mas o nosso presente também está prestes a pegar fogo. Aproveito a oportunidade para lembrar que na mesma semana do incêndio da Cinemateca Brasileira, tivemos novos decretos que minam e censuram a atuação da Lei Rouanet.
Parte das modificações pode e irá atingir a continuidade de festivais de cinema importantes para o país. O alerta não foi ouvido quando divulgado, mas com certeza será tratado com tristeza quando não tivermos os eventos culturais que tanto amamos, mais uma vez com a preocupação chegando tarde demais. Me despeço com uma provocação: quantas vezes no último ano se você se deu ao trabalho de checar as notícias do audiovisual brasileiro e contribuir para a divulgação de tantos pedidos?