O sentir e a política em três filmes - Cinem(ação) - artigo
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O sentir e a política em três filmes

Diante da fogueira, Kurt confessa sentir falta do amigo que está ao seu lado, e coloca em palavras o abismo que os separa. Ao longo dos minutos seguintes de Antiga Alegria (Old Joy), da diretora Kelly Reichardt, vemos os dois amigos tentando construir essa conexão. Não é preciso de muito contexto para que possamos compreender que muito dessa barreira entre eles está nas diferenças econômicas. Enquanto Mark tem uma vida mais confortável, Kurt não se encaixou. O programa de rádio nos conta sobre os altos custos de moradia e inflação que fazem tudo mais difícil para alguns.

Neste aspecto, o personagem não é muito diferente no filme Em Chamas, de Lee Chang-dong. Na produção coreana, Jong-su é um jovem adulto que não consegue emprego fixo. Em uma Coreia do Sul em crise, ele e sua amiga Hae-mi vivem dificuldades e dramas que seriam amenizados em caso de um momento econômico mais pujante. A riqueza do “amigo” Ben, vivido por Steven Yeun, aumenta os estranhamentos e a desconfiança (do protagonista e de nós, espectadores).

Em Lovers Rock, segundo episódio da série Small Axe, dirigida por Steve McQueen, vemos jovens negros em uma casa noturna de Londres. Ainda que seja um local frequentado apenas por negros, que encontram no ambiente um espaço de resistência e de aceitação, há tensões entre eles. Há homens que objetificam e abusam das mulheres, há jovens mais pobres que não conseguem entrar na casa. Garotos brancos racistas e policiais representam o mundo opressivo que os cerca.

As situações apresentadas nestas produções se conectam. Refletir a respeito delas como um grupo de situações permite uma visão mais nítida de como a política (no seu sentido mais amplo) influencia as vidas das pessoas no nível mais íntimo.

Em “Antiga Alegria”, um homem na faixa dos 30 anos (quando se é jovem demais para ser velho e velho demais para ser jovem) tem sua tristeza e possível depressão amainados pela presença do amigo. Seus sonhos mais profundos são políticos, porque o colocam em um lugar de desencaixe na sociedade. Suas alegrias de antes (como diz o título do filme) são as únicas às quais ele se apega, já que o mundo não trouxe novas alegrias.

Na produção coreana “Em Chamas”, o protagonista busca, junto com sua amiga, um calor que não encontra. A frieza do mundo fez com que ele também se segregasse do mundo que o cerca. Não há trabalho que seja possível para ele, assim como não há sol que esquente: há apenas a injustiça do mundo a lembrá-lo como somente os mais ricos se safam.

Na Londres dos anos 1980, o episódio de Steve McQueen conta a história de um amor que está nascendo. Há impedimentos para a protagonista Martha (Amarah-Jae St. Aubyn) se divertir e expressar sua sexualidade. A família religiosa, que a obriga a sair de casa escondida, o patrão (branco) de seu novo namorado, e até mesmo outras mulheres que sentem inveja dela. Para Martha, expressar-se e fazer suas vontades é o ato de resistência necessário para evitar que seu corpo seja apenas um frio instrumento das engrenagens da sociedade.

Um filme americano de 2006, um filme coreano de 2018 e um episódio britânico de 2020 (retratando quase 40 anos antes) conseguem reforçar o quanto até mesmo os sentimentos mais íntimos e os desejos mais arraigados se conectam com o mundo ao redor. Nossos corpos são políticos, mas nossos sentimentos também. Haveria outra forma de uma mulher negra, filha de imigrantes, na Londres dos anos oitenta, se divertir e se expressar como é, sem que para isso tivesse que resistir às múltiplas formas de opressão (dentro e fora de sua comunidade)? Estaria um homem de (quase) meia idade tão desolado se tivesse perspectivas de melhoria social ou algum tipo de acolhimento da sociedade? Será que o jovem coreano Jong-su se tornaria alguém tão triste, a ponto de acumular raiva tal qual uma bomba que só necessita de uma faísca, se tivesse mais oportunidades para si mesmo e para seu pai?

Em todos os tempos e diferentes lugares, a falta de acolhimento e de perspectiva molda toda uma sociedade, especialmente jovens adultos. É nessa busca por um mundo menos desigual que reside a conexão entre as histórias. O final feliz de “Lovers Rock” nos lembra que é preciso de uma resistência que nem todos conseguem ter.

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Em Chamas, Antiga Alegria e Small Axe são obras extraordinárias e com muito mais significados do que aqueles que foram trazidos neste texto.

No momento, os filmes e o episódio estão disponíveis nas seguintes plataformas:

Em Chamas (Burning): Belas Artes e SESC Digital (gratuito por tempo muito limitado)

Antiga Alegria (Old Joy): Mubi.

Small Axe (segundo episódio): Globoplay.

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