Os personagens do BBB21 e o que podemos aprender com eles
No exato momento em que escrevo estas palavras, a 21ª edição do reality show Big Brother Brasil, o famoso BBB21, está em vias de acabar. A não ser que um tornado deixe o país sem internet até lá, ou ocorra uma hecatombe nas redes sociais, a advogada paraibana Juliette Freire deve se consagrar vencedora.
Como espectador, passei a acompanhar o show diariamente a partir do episódio que resultou na eliminação da cantora Karol Conká. A última vez que me lembro de assistir ao programa diariamente foi aos 15 anos, em sua primeira edição. Façam as contas. Depois disso, acompanhei apenas momentos pontuais.
Ao longo das 21 edições, os debates sobre as questões que envolvem o formato do programa (bem como de outros reality shows de confinamento) foram inúmeros: o interesse do público pela intimidade alheia; a curiosidade em ver dinâmicas entre pessoas reais; a extrapolação da banalidade; a transformação do trivial em narrativa; e assim por diante.
Sem contar, é claro, com as ditas “polêmicas” e os episódios em que o programa (ou seus participantes) flerta com a falta de ética, que vão desde momentos de acusação de estupro (que levou à expulsão do participante Daniel Echaniz no BBB12, não sem antes haver resistência da direção do programa), violência contra mulher (que levou à expulsão de Marcos Harter no BBB17), até os recentes episódios de abuso psicológico da cantora Karol Conká sobre o ator Lucas Penteado.
Em meio a mudanças de trajetória, fama ou ostracismo dos ex-participantes na vida pós-BBB, o que podemos ver é que a forma como as histórias são contadas faz toda a diferença na criação da narrativa. É como se o BBB fosse um documentário sobre banalidades construído na montagem de casa episódio, com a devida influência dos passos semanais dados no jogo. Assim, com os votos para eliminar os outros participantes, as provas realizadas por todos e as regras fundamentadas na criação de discórdia e pressão, os personagens vão se moldando e desenvolvendo seus próprios arcos: de redenção, de superação ou de resiliência. É como se cada um fosse um Ulisses a viver sua Odisseia, sendo eliminado no momento em que sua narrativa passar a desagradar a maioria (dos espectadores ou dos desocupados dispostos a passar o dia votando).
Quer dizer, então, que os participantes são personagens criados, e não pessoas?
Sim e não.
É claro que não há um roteiro prévio a ser seguido. E a ideia de que “é tudo combinado” no BBB é um mito. Basta refletir em como seria difícil forjar comportamentos e situações no relacionamento de quase 20 pessoas para perceber que não se trata de “atores contratados”. Aliás, com a seleção cuidadosa dos participantes e a criação de situações atípicas e estressantes, os atritos e as “histórias a serem contadas” surgem como consequência. A alimentação pobre em gordura e rica em carboidrato, a ausência de distrações, a iluminação, a irregularidade de horários e a decoração do local são alguns dos elementos que contribuem muito para que os participantes fiquem com as emoções afloradas.
Acontece que os seres humanos que participam do BBB exercem a função de personagens conforme o que se exige deles no momento da história. Isso tem relação com a estrutura do jogo e com a construção da edição do programa. E mesmo os espectadores mais assíduos do tal “pay-per-view” – que hoje já é streaming e OTT – acabam se deixando levar pelas construções criadas.
É por isso que eu decidi reler algumas concepções e explicações sobre personagens que, junto com alguns acontecimentos do BBB21, podem nos ajudar a refletir sobre essa construção.
“(…) a limitação da obra ficcional é a sua maior conquista. Precisamente porque o número das orações é necessariamente limitado (…), as personagens adquirem um cunho definido e definitivo que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio com elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata de orações e não de realidades, o autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção dos aspectos que apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido do que a observação da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, através de situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida”. (Anatol Rosenfeld)
O trecho do livro “A Personagem de Ficção” nos permite pensar muito em como a formação de personagens requer, necessariamente, a limitação da história. Personagens precisam de “aspectos essenciais”, e por isso se faz necessário suprimir alguns elementos que não ajudam a contar a história que se deseja contar no momento em que o reality show seleciona a edição. Quando discutimos personagens de filmes, por exemplo, comentamos sobre a importância de que eles sejam “tridimensionais e complexos” em vez de simplistas, mas há limites para isso: é preciso que eles não sejam contraditórios, a não ser que haja tempo para desenvolver essa contradição.
No BBB21, basta observar alguns comentários em redes sociais que veremos pessoas apontando “erros” de Juliette que foram esquecidos ou deixados de lado, evidenciando que há elementos do conflito que não ajudam a construir as histórias que se fizeram na edição. E os comentários de pessoas espantadas com o posicionamento político mais “progressista” do participante Arthur, que afirmou ter respeitado o distanciamento social, só reiteram uma expectativa baseada em estereótipos. Afinal, um praticante de crossfit com características pouco sensíveis em seu relacionamento com a Carla passa a ser complexo demais quando não demonstra ser “de direita”, como se esperaria de seu arquétipo. É como se essas características extrapolassem a construção dos aspectos do personagem para sua função.
Algumas semanas depois, sem a chance de ser votado para sair da casa, Arthur mudou sua postura e passou a ser visto como um personagem diferente. O ser humano, complexo, se viu com outros amigos e começou a agir diferente. Com poucas intenções de voto para sair, alguém perguntou no Twitter: “vocês se esqueceram do que ele fez com a Carla?”. Sim, esqueceram. Porque já é outro personagem: mudou de arco, passou de fase, e nos episódios em que estava, sua atuação era outra.
“Neste caso, deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada (…)” (Antonio Cândido)
O texto de Antonio Cândido, do mesmo livro já citado, nos lembra que personagens são invenções. Embora tenha sido escrito no contexto do personagem literário, ele nos permite aprofundar nos personagens criados nas diferentes etapas da(s) história(s) que se conta(m) ao longo do reality show.
Ora, se toda personagem é inventada pelo romancista, quem a inventa no espetáculo televisivo? Os próprios participantes! Eles o fazem em função dos acontecimentos induzidos e dos dizeres que fazem sobre si mesmos. Quando o apresentador oferece pequenos lampejos de análise das atitudes de cada um, e quando estes conversam com os outros participantes que revelam visões diferentes, os “brothers” ganham elementos que ajudam a construir a visão de si mesmos, que moldam as características que serão trabalhadas.
Cada participante é o autor de seu próprio personagem, que vive sua própria narrativa dentro de uma grande narrativa-macro, que culminará na grande final. O apresentador faz as vezes de corroteirista. Esses personagens não seriam possíveis em uma realidade outra: apenas confinados em uma casa, votando uns nos outros.
Isso não significa que as pessoas dentro da casa estejam “fingindo” ou “atuando”. Todos nós, em nossas realidades, somos personagens até certo nível, e nos moldamos diante das diferentes situações e papéis que exercemos. A questão é que, dentro de um confinamento repleto de situações atípicas, as reações e sentimentos são elevados à máxima potência, fazendo com que possamos ver esses personagens se constituindo e se destacando.
Assim, os participantes moldam suas funções como personagens nas relações que constroem entre si, mas ainda precisam obter uma compreensão da realidade de fora da casa, fazendo aquilo que dentro do contexto do Big Brother é chamado de “visão de jogo”. Ou seja, além de se constituírem na relação entre eles, precisam considerar que são o palco de um grande teatro. É o que Juliette e Gilberto conseguiram fazer muito bem ao dizer coisas que o público quer ouvir, e o que Viih Tube não soube fazer.
“Alguns teóricos chegam inclusive a definir o teatro como a arte do conflito porque somente o choque entre dois temperamentos, duas ambições, duas concepções de vida, empenhando a fundo a sensibilidade e o caráter, obrigaria todas as personalidades submetidas ao confronto a se determinarem totalmente”. (Décio de Almeida Prado)
Se pensarmos assim, portanto, veremos que os personagens vão se apresentando e se moldando conforme os conflitos são colocados. E conforme os conflitos mudam, também se transforma a maneira como eles se fazem. Assim, mesmo sem prever ou planejar, os participantes moldam seus próprios arcos. É por isso que o divertido Gil “do vigor” conquistou tanta gente: sua história pregressa faz dele um homem que superou as amarras de uma sociedade e se mostrou livre delas, divertindo-se e vivendo intensamente de forma a protagonizar os próprios confrontos exibidos no “teatro”, ou seja, na ação voltada ao público. Mais cativante que sua história, só a de uma mulher que foi humilhada no começo, mas moldou seu personagem de forma a “dar a volta por cima” em uma trajetória de superação: nada atrai mais o público do que a história de um injustiçado, ainda mais quando esse público escreve a história em conjunto por meio de votos, ou seja, contribuindo para essa superação e tornando-se mais do que público: um coadjuvante da história.
Dessa forma, em meio a personagens que se confundem com pessoas, e situações reais que flertam com o ficcional (a raiz do nome do show vem do clássico de Orson Welles, afinal de contas), podemos apenas observar e nos encantar com essa amálgama entre realidade, construção da realidade e altas doses de futilidade e banalidade.
“(…) afastando-se da realidade e elevando-se a um mundo simbólico o homem, ao voltar à realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade. Através da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade” (Anatol Rosenfeld)
No contexto de uma crise sanitária, econômica e política, é curioso (e sintomático de nossos tempos tão líquidos) que busquemos em um reality show a possibilidade de nos aproximarmos de uma realidade para, no fim das contas, nos afastarmos dela. O BBB pode não ser “arte”, mas a construção narrativa que o permeia certamente é.
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*Bibliografia: “A Personagem de Ficção” (Antonio Cândido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes). Editora Perspectiva, 6ª edição, 1981. Páginas: 34, 35, 49, 69, 93.