Regulação não é “aberração”, é direito
Na última segunda-feira (26), representantes da Globo e Sky (também conhecida como AT&T e dona do futuro streaming HBO Max) se reuniram em um evento dedicado a debater o streaming no Brasil.
Seguindo a pauta da mesa de discussão, os representantes expuseram suas opiniões referentes ao imbróglio da regulamentação do streaming, que se estende por longos anos no país. Sem deixar as visões liberais de lado, tivemos mais uma prova do buraco que nos metemos e que será difícil de sair.
O diretor de relações institucionais da Globo, Marcelo Bechara, foi bastante enfático ao dizer que regular o streaming aos moldes da Lei do SeAC não faz nenhum sentido, uma vez que o modelo de TV por assinatura já está consolidado e o streaming ainda passará por mudanças.
Apesar de não estar errado em sua análise inicial, Bechara desce completamente o nível ao dizer que a proposta de incluir o streaming nos planos do SeAC é uma “aberração” – mesmo que a lei diga claramente que é necessário regular o modelo, e em um passado não tão longínquo a Ancine chegou a publicar Instruções Normativas para tal.
É engraçado pensar no jogo de narrativas criadas por tais representantes em tão pouco tempo. Enquanto a PL do deputado federal Paulo Teixeira estava devidamente engavetada, o debate era que não tinha como um Serviço de Valor Adicionado (SVA) ser comparado ao de Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), uma vez que é preciso de um aparato tecnológico para serem exibidos.
Agora, sentindo a pressão que o deputado tem feito no Congresso para ter a PL aprovada ainda este ano, tentam retirar o doce da boca da criança reformulando uma narrativa inexistente e sendo completamente desrespeitoso com a classe.
Para sustentar o argumento, o sócio da Bitelli Advogados, Marcos Bitelli, afirma que as plataformas não precisam mais de cotas e regulamentações pois diversificaram e aumentaram as condições de acesso. Portanto, seria um modelo de negócios que se autorregula e que protege a produção nacional – um discurso bastante Paulo Guedes, para dizer o mínimo.
Gostaria que o advogado me explicasse os motivos pelos quais não podemos regulamentar um modelo de mercado ainda em transição: parece que o profissional perdeu algumas leituras nos últimos anos e não acompanhou os debates e as formulações das legislações regulatórias destas empresas na Europa.
Sem deixar ninguém mentir, o Observatório Europeu de Audiovisual recentemente divulgou um estudo analisando o impacto que as cotas e os impostos cobrados das plataformas tiveram sobre os países-membros da União Europeia: há muito ainda que conquistar, mas para uma um ambiente regulatório que existe há menos de 5 anos, houve avanços incríveis.
A proposta apresentada no painel consiste em um modelo de política de incentivo bastante confuso, em que se espera que as próprias plataformas busquem produtores independentes para realizarem projetos em parcerias, e que se enquadrem no modelo do Artigo 39 da MP 2.228/01, que criou a Agência Nacional do Cinema.
Para quem é distante dos termos jurídicos e regulatórios, o Artigo 39 promove a isenção de pagamento da Condecine (tributo cobrado pela Ancine e que alimenta 90% do FSA) de programadoras que invistam pelo menos 3% do valor em obras brasileiras em remessas para o exterior.
Mesmo que seja bastante convidativo que o streaming participe desta frente de mercado já consolidada pela MP, devemos ter atenção para entender que o Artigo 39 beneficia, em suma, grandes produtoras do país, deixando de fora uma extensa cadeia produtora que só existe devido às conquistas da regulação presente na Lei do SeAC.
Sendo o Brasil o segundo maior mercado audiovisual na América Latina, me choca que os grandes protagonistas dele tenham uma visão rasa sobre o que significa regulamentação das plataformas.
Ter a oportunidade de exportar o produto brasileiro é excelente, mas também temos que cuidar do nosso mercado interno, buscando caminhos para o crescimento da economia criativa que gera ao menos 300 mil empregos em nosso país – e já está mais do que comprovado que o caminho é pela regulamentação.
Além disso, a regulamentação traz segurança de direitos ao autor da obra, autonomia para ter o seu trabalho negociado com outras plataformas e investimentos diretos ao FSA, assim como já ocorre em todos os países que aprovaram uma legislação contundente com os interesses das suas indústrias internas.
É irreal a confiança que os advogados depositam nas plataformas, esperando que elas se abram para investir em produtoras menores e tenham uma responsabilidade de proteger um mercado que não diz respeito às suas nacionalidades.
Enquanto isso, vamos perdendo empregos, protagonismo internacional e dinheiro. “Aberração” é achar que o Brasil existe para ser subserviente aos interesses de empresas internacionais e que a nossa soberania é um erro.