Crítica: Malmkrog – 44ª Mostra de São Paulo
“Malmkrog” é uma (longa) provocação filosófica para pensarmos sobre nosso presente e passado recente.
Ficha técnica:
Direção: Cristi Puiu
Roteiro: Cristi Puiu
Nacionalidade e Lançamento: Romênia, Sérvia, Suíça, Suécia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia do Norte, 2020 (44ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Nikolai é um rico fazendeiro que deixa sua propriedade no campo à disposição de alguns amigos. Para os convidados, o tempo passa regado a fartas refeições, jogos sociais e longas discussões sobre a morte e o Anticristo, o progresso e a moralidade. O debate se torna mais acalorado, os temas tratados cada vez mais sérios e, logo, as diferenças culturais e de pontos de vista revelam-se evidentes e intransponíveis. Definitivamente, nenhum deles é capaz de perceber a dimensão da situação em que involuntariamente se meteram. Adaptação do livro Three Conversations, do filósofo russo Vladimir Solovyov.
Elenco: Frédéric Schulz, Richard, Agathe Bosch, Diana Sakalauskaité, Marina Palii, Ugo Broussot, István Téglás.
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Inspirado em um livro do filósofo russo do século XIX Vladimir Solovyov, “Malmkrog” poderia ser uma ótima peça de teatro. O que o cineasta romeno Cristi Puiu faz é ampliar ainda mais a capacidade de provocação com recursos do cinema.
Seria necessário rever algumas vezes as 3 horas e 20 minutos deste filme para absorver os temas, debates filosóficos e outros elementos presentes em seus longos diálogos – como sutilezas dos personagens, por exemplo. O grande trunfo de “Malmkrog”, no entanto, está na sua possibilidade de leitura a partir da perspectiva histórica que temos nos dias de hoje.
Todo o filme se passa em uma grande propriedade de aristocratas russos, já com a presença de seus convidados. De primeira, somos apresentados a uma anedota que questiona o quanto o arrependimento de ter feito algo mau pode ser um castigo maior em comparação com aquele que não se arrepende. Em seguida, seremos guiados por uma câmera quase sempre estática, porém eventualmente guiando nosso olhar a cada interlocutor, para longas conversas entremeadas por poucos cortes e apenas algumas situações entre elas.
Com diálogos surpreendentemente cativantes, somos apresentados a debates que questionam os limites entre o bem e o mal, a necessidade da guerra, a união dos povos europeus, entre outros assuntos que fluem em conversas com personagens muito eloquentes e cultos.
Os temas pensados por Solovyov no final do século XIX e ditos pelos personagens deste mesmo período em “Malmkrog” possibilitam reflexões interessantes e repletas de ironia para o nosso contexto atual, como as raízes do pensamento que culminaria na formação da União Europeia e as reflexões sobre a Guerra e o “mal” em um período anterior às duas grandes guerras e à ascensão do nazifascismo (ainda que haja personagem com pensamentos eurocêntricos semelhantes).
O que Puiu faz ao filmar tais diálogos é utilizar-se do poder da câmera para nos mostrar visões amplas da casa. Aproveitando-se da grande profundidade de campo e do foco infinito da lente, o cineasta nos permite muitas vezes olhar para o todo, incluindo o ir e vir dos empregados que servem os patrões e convidados – acrescentado de um desenho de som que evidencia os passos e o tilintar de louças. Outra cena incrível é a de uma criança indo em direção à sala e sendo impedida por outra empregada. Afinal, era muito cômodo que aristocratas discutissem temas filosóficos enquanto seus empregados eram explorados e seus filhos eram escondidos e cuidados por babás.
“Malmkrog” possui elementos que remetem ao absurdo: sons de piano e de coisas se quebrando costumam atrapalhar os diálogos, e uma cena aparentemente imaginada serve para nos lembrar da fragilidade destas pessoas. Tais situações, especialmente as que atrapalham os discursos, chegam a remeter a “O Discreto Charme da Burguesia”. Faz-se interessante notar, também, que os barulhos que surgem demonstram uma casa em pleno funcionamento e alheia às “frivolidades” dos protagonistas.
Aliás, os problemas de saúde na família de Nikolai apenas reforçam o quanto existem “problemas reais” em sua vida enquanto o grupo de amigos debate questões que, apesar de importantes, não resolvem problemas.
É claro que a longa duração e a sobriedade do filme fazem de “Malmkrog” uma obra complexa que tenta falar sobre coisas demais e poderia ser mais sucinta. Entretanto, seria um filme tão filosófico se não fosse prolixo?