A beleza efêmera de “Prima Sofia”
Em 1960, Federico Fellini lança uma de suas obras-primas – “A doce vida”, filme que retrata o vazio existencial de uma sofisticada classe burguesa francesa e a superficialidade nas relações de celebridades (em especial do cinema) com o mundo ao seu redor. Em “A doce vida”, nossos olhos são guiados por um jornalista que transita pelos meandros das fúteis e vazias festas de uma decadente e desalmada Roma. 60 anos depois, outra obra europeia – “Prima Sofia” – busca expor essa frívola relação de uma classe diante de seu entorno, mas agora por outros olhos.
Dirigido pela francesa Rebecca Zlotowski, “Prima Sofia” (disponível na Netflix) nos coloca sob o olhar de Naïma, uma adolescente ainda em dúvidas quanto ao que fazer de sua vida pós colégio. A partir do momento que Sofia, sua prima vai passar as férias em sua casa, Naïma vê outras possibilidades para sua pacata vida.
O filme parte da exploração da beleza de Sofia, em especial do seu corpo, para criar um contraponto com o Naïma, que apesar de ainda muito bonita, foge do padrão normativo de beleza e sensualidade. Essa exploração, aparentemente apelativa, tem uma função muito presente na obra – propor uma discussão quanto ao que é belo e o que é fútil. A partir dessa proposta, Rebecca Zlotowski provoca o espectador desde a primeira cena ao explorar o belo cenário em uma praia na cidade de Cannes na França e também o corpo da atriz Zahia Dehar. Tudo nesse início de filme é lindo e exuberante, e Rebecca explora tudo com muita calma, valorizando cada detalhe, novamente, tanto do cenário quanto do corpo de Sofia. Sua presença nunca passa despercebida, chamando a atenção de todos ao seu redor, seja pelos olhares sedentos dos homens, quanto pela admiração e inveja de outras mulheres.
Aqui vale um parêntese importante que diz muito sobre a proposta provocativa que Rebecca buscou para esse filme. A atriz Zahia Dehar, hoje uma famosa estilista de lingeries, já esteve envolvida em um caso de prostituição envolvendo alguns jogadores da seleção francesa de futebol em 2009 na França. Na época, Zahia era menor de idade o que gerou uma enorme polêmica na França. Porém, como estamos falando de poderosos e ricos jogadores de futebol, nada demais aconteceu com os atletas, e com a repercussão do caso, Zahia se tornou uma celebridade da noite pro dia, despertando certo ódio por parte da sociedade conservadora francesa. Partindo desse relato, a escalação de Zahia para o papel de Sofia é fundamental para entendermos a relação dela com Naïme.
Sofia é livre, seduz e se relaciona com quem ela quiser, e mesmo quando isso lhe causa dano, ela assume esse ônus e isso desperta a admiração de Naïme que vê na prima um ideal de liberdade. Naïme tenta, ainda sob desconfiança, reproduzir as atitudes de Sofia até perceber que essa liberdade é tão artificial quanto tudo aquilo que ela rejeita nessa superficial e glamourosa Cannes. Naïme que vive em um quarto de hotel onde sua mãe trabalha, observa com os próprios olhos a futilidade daqueles ricos e influentes que ali frequentam, mas a confusão pertencente à adolescência desfoca a realidade daquele lugar.
Sofia é um ideal de liberdade para Naïme, porém, a própria Sofia (ou a própria Zahia) não é tão livre quanto parece, tendo sempre sua bela imagem sendo distorcida e suas capacidades questionadas. Há inclusive uma ótima cena onde uma socialite italiana questiona o fato de Sofia gostar de literatura contemporânea. Porém, apesar de todo o esforço de Sofia, ela continuará sendo apenas uma garota sex, ou como o ótimo e provocativo título original, Une fille facile (uma garota fácil). Ela surge na história sem contextualização e some do mesmo jeito, sem que sabíamos muito sobre seu passado e futuro, o que pode gerar frustração no espectador pelo não desenvolvimento da personagem. Mas é isso é muito bem pensando por Rebecca Zlotowski pois Sofia é esse ideal imaginário baseado apenas naquilo de vemos de imediato – presente. É a efemeridade que se esvai pela falta de contexto.
Talvez o filme seja vítima da própria premissa ao retratar a superficialidade daquelas relações da forma como elas realmente são – superficiais. Mas isso não tira os méritos de uma obra provocativa e que vai muito além de um softporn como alguns vem pintando. “Prima Sofia” é uma deliciosa obra sobre o amadurecimento e as efemeridades de ideais vazios. É um filme que instiga pela feiura de todas aquelas frívolas belezas. Uma obra para repensar o que realmente é belo.