“Arábia” e por que precisamos de cinema
O cinema é uma arte com possibilidades que vão muito além de apenas contar histórias.
Mas se servisse para nada mais que contá-las, isso já seria o suficiente.
Porque ao contar histórias, ele é capaz de sintetizar a vida de todo um povo.
Em “Arábia”, de João Dumans e Affonso Uchoa, acompanhamos a história de Cristiano. No começo nem parece que a história vai ser dele, mas acaba sendo. Cristiano sempre foi solitário e passou os anos de sua vida indo de cidade em cidade, trabalhando em inúmeros empregos: descarregando caminhões, quebrando pedras, colhendo mexericas. Fez de tudo um pouco. Sempre sozinho. Ou quase sempre.
Por meio de seu relato escrito e lido por um adolescente que encontrou seu caderno, acompanhamos Cristiano em suas andanças pela vida. Preso sem motivo decente, sai a esmo e aprende, entre tantas coisas, sobre o poder que um povo pode ter para enfrentar seus opressores. Acompanhamos muito de sua história com câmeras estáticas, que mostram o personagem como parte da paisagem. Quase como se fossem sempre o palco do teatro da fábrica.
Algumas conversas que vemos em Arábia são mais profundas que aquilo que suas palavras representam. Ele explica para o primo os lugares onde já dormiu. Mais tarde, conversa com um amigo sobre os piores e melhores tipos de coisas para carregar. Encontra o amor nos braços de uma mulher, mas a dureza da vida lhe fez pouco habilidoso para expressar o que sente. Entre tantos monólogos e relatos, tem um no final, feito no absoluto silêncio, que é particularmente poderoso e visceral.
A piada que dá nome ao filme faz referência ao deserto, que é visto pelos trabalhadores como matéria prima para trabalhar – afinal, areia serve para fazer cimento. A vida dele é isso: um deserto, mas com trabalho que nunca acaba.
A história de Cristiano é fictícia, mas isso não faz dela menos real. É nos acontecimentos da vida deste personagem que podemos ver a história de muita gente. De gente que não tem seus nomes nos livros de história, e que nem sempre tem a oportunidade de registrar suas palavras em um caderno.
E no fim das contas, um filme como Arábia conta a história dessas pessoas. Registra na tela as dores e os sentimentos de todos aqueles que carregam o país nas costas. E é pra isso que precisamos de cinema: porque essa é a nossa história. Sem filmes como Arábia, nosso país não pode escancarar sua realidade e construir sua identidade. Seríamos um território de mentira, delimitado por linhas imaginárias e representado por símbolos vazios.
Viva o cinema nacional.