É verdade que o mercado cinematográfico americano não usa recursos públicos?
Ao ser convidada para integrar o time de colunistas do Cinem(ação), fiquei em dúvida sobre qual tema abordar em minha estreia. Mesmo com o mercado sentindo os impactos da pandemia do novo coronavírus, resolvi começar um pouco diferente.
Para quem não me conhece, me chamo Marina Rodrigues e atuo como produtora audiovisual. Um dos meus focos de trabalho é o mercado latino-americano, tão pouco divulgado pelas massas, como também pouco compreendido com suas práticas de negócios, restando apenas críticas.
Devido a nossa colonização pelo produto norte-americano, estudantes, profissionais e amantes da sétima arte sabem destrinchar com facilidade o seu mercado — ou pensam entender com maior propriedade pela sua imagem de praticidade — e acabam por reproduzir falácias sustentadas pelo livre-comércio.
Um dos maiores erros que se pode cometer ao falar sobre o mercado cinematográfico dos Estados Unidos, é insistir em dizer que eles não fazem uso do dinheiro público e que a cota de tela é um mecanismo que nunca foi usado.
Como explicar então o sucesso estrondoso do seu mercado? Seria apenas uma questão de qualidade? Você já deve estar respondendo mentalmente que não.
Ironicamente, a cota de tela foi uma das primeiras políticas públicas implantadas nos Estados Unidos para garantir o lançamento de títulos nacionais. A agressividade de sua porcentagem (100% do parque exibidor) ensinou os americanos a apreciarem o seu próprio cinema e artistas, criando um hábito de grande valorização do produto nacional.
A regulação dessa cota de tela perdurou por 50 anos, tendo caído pela metade somente quando a França, berço do cinema, se viu desvalorizada por não conseguir exportar seus filmes.
Há quem diga também que a cota de tela não tem impacto econômico, no entanto, o consumo massivo do conteúdo, gera a continuidade das produções, prevendo seu retorno não só cultural, como também financeiro, afinal, que empresa não desejaria investir algum capital na indústria cinematográfica?
Para usar como exemplo, cito nossas próprias regulações: hoje o Brasil prevê em torno de 1,5% a 2% de cota de tela para o conteúdo nacional na TV Paga, porcentagem que foi prevista e sancionada junto a Lei do SeAC, a mais importante do nosso país e em vigor desde 2012.
Mesmo com o espaço mínimo a ser cumprido, o conteúdo brasileiro hoje marca presença em mais de 10% da cadeia televisiva, tendo não só revelado a importância da valorização, como também impulsionou novos negócios na indústria brasileira. Imagina o que 100% durante 50 anos não traz de retorno para o mercado, o resultado disso vemos diariamente pelo nosso consumo.
Se a cota de tela é uma política pública de extrema importância, o que você diria se soubesse que o mercado americano também recebe infinitos apoios estaduais?
Com a chegada dos anos 70, Hollywood teve que se adaptar a uma nova realidade. França e Itália já tinham provado que o uso do espaço externo, abandonando algumas práticas de estúdio, revelavam um novo desejo do cinema em mostrar uma sociedade crítica ao sistema político e rebeldes com causas sociais.
Filmar em espaços públicos é algo extremamente burocrático, é necessário ter autorização dos órgãos municipais que cuidam da segurança e do fluxo de pessoas, reduzindo muitas vezes a possibilidade de as cenas serem executadas somente após as 18h ou nos finais de semana.
Surge aqui uma grande possibilidade de incentivo à produção cinematográfica, a pouco conhecida Film Commission. O termo em inglês quer dizer Comissão Fílmica, e por finalidade, ela é uma iniciativa, geralmente, totalmente estatal.
O setor de Film Commission tem como objetivo central atrair produções para uma determinada cidade, oferecendo retorno financeiro para as produtoras e favorecendo empresas locais, contribuindo assim para o desenvolvimento econômico.
A California Film Commission é uma das mais importantes do país. Situada aos pés de Hollywood, o órgão faz parte do departamento de desenvolvimento econômico do estado e sua política de cash rebate é apoiada pela política de dedução fiscal, gerando um Fundo para a cidade de mais de US$ 300 milhões ao ano.
As taxas de retorno são parecidas em praticamente todo o mundo, variando de 20% a 30% do valor mínimo previsto pela Film Commission em questão. A iniciativa estatal foi de grande valia para o cinema independente do país, que não encontra parceiros em Hollywood com facilidade devido os orçamentos de baixo custo.
Além dos filmes, a política pública da Film Commission contribui para séries de TV, como Stranger Things, e outras famosas da atualidade, que fazem uso do sistema estatal como maneira de financiar suas temporadas.
O uso de recursos públicos para finalidades culturais é algo essencial para o desenvolvimento econômico de qualquer país. Ainda que os Estados Unidos tenham uma agressiva política de lobby no exterior, sem o incentivo estatal, seu mercado já não seria tão forte na atualidade, arriscaria dizer até que nunca.
Ao retornar à sala de cinema para assistir a mais um blockbuster norte-americano, lembre-se que dentro daquele filme repousam iniciativas estatais e uma cota de tela que é levada a sério pelo seu mercado exibidor.
E aí, você ainda pensa que Hollywood é construída somente de capital privado?