A Onda: pensamentos sobre autocracia e fanatismo
Recentemente, tive a oportunidade de revisitar o filme A Onda. Bastante conhecido por muita gente, o longa alemão dirigido por Dennis Gansel (com um Max Riemelt ainda pouco conhecido) foi lançado no Festival de Sundance de 2008, chegando aos cinemas brasileiros apenas em agosto de 2009. Desde então, se tornou um cult especialmente valorizado pela forma didática com que apresenta o surgimento de uma ditadura fascista.
Não surpreende que essa ideia tenha surgido de produtores alemães. Mais do que o país conhecido por ter tido o ditador mais terrível dos últimos tempos, a Alemanha é também um dos poucos países que conseguiu erradicar o fascismo e educar seu povo a evitar ao máximo o surgimento de regimes sequer parecidos.
Revisitar A Onda em pleno 2020, 12 anos após o lançamento do filme, é quase como assistir a uma representação do nosso passado recente. Ainda que o filme seja simplista em alguns momentos, com alguns diálogos por vezes explicativos demais, sua narrativa mostra inúmeros elementos importantes para compreendermos a situação atual do Brasil e de diversos outros países.
Autocracia
Imagine uma situação hipotética em que o Supremo Tribunal Federal seja dissolvido junto com as diferentes instituições do poder legislativo (como o Congresso Nacional e o Senado, por exemplo), mas o presidente se mantenha. É algo apenas hipotético, claro! Nesse caso, teríamos uma autocracia, ou seja, um poder centrado em uma única pessoa. Para que isso ocorra, seria necessário que essa única pessoa tivesse popularidade e capacidade de gerar um conceito de unidade em todo o povo (ou boa parte dele).
Ainda que a autocracia se refira à origem do poder e não ao regime deste, ela é comumente associada a regimes autoritários, como Ditaduras ou Monarquias Absolutistas. O filme “A Onda” mostra diversos elementos que unem as pessoas em torno de uma única figura de poder: o senso de união, a redução das diferenças por meio de formas de se vestir, o gesto e a marca criados para simbolizar o movimento criado em função deste líder.
Dentre as muitas discussões que o filme pode suscitar, uma delas me chamou bastante atenção: a solidão do fanático.
O fanatismo de quem não tem onde se apoiar
Um personagem que me chamou mais atenção desta vez, ao ver o filme, foi Tim (Frederick Lau). O adolescente, por viver em uma família que lhe dá pouco valor, se sente sozinho e sofre frequentes ataques de bullying.
Com o crescimento das medidas autocráticas dentro da sala, podemos ver que o senso de pertencimento do adolescente cresce cada vez mais. Sem uma figura paterna, é no professor autoritário que ele enxerga sua possibilidade de proteção, e por isso ele acompanha o professor até a casa dele. É nos colegas, que vestem a mesma roupa e finalmente o enxergam como uma parte do todo, que ele encontra defesa contra ameaças externas, como no momento em que ele é quase atacado por um rapaz de fora da escola. É também no grupo recém-formado que ele encontra finalmente sua aceitação: se antes não o valorizavam pelo que ele era, a partir da criação da nova sociedade autocrática ele passa a extrapolar sua individualidade.
Mais do que representar a figura do fanático político, podemos ver em Tim a representação do fanático religioso e até mesmo do terraplanista.
Sei que é perigoso observar fenômenos políticos com base em questões pessoais. Mas é impossível não associar a solidão e a necessidade que uma pessoa pode ter de encontrar pertencimento em brechas como estas, abrindo caminho para a formação de seguidores de determinadas correntes de pensamento. O personagem Tim precisava se apoiar em algo. É claro que poderia ser em uma corrente de pensamento até mesmo contrária, mas o fato de a autocracia e grupos protofascistas serem capazes de minar individualidades e nivelar grupos permite que as pessoas se livrem dos problemas anteriores que as afligiam: encontrar a si mesmo, descobrir-se mais profundamente, entre outras dessas dificuldades que quase todos enfrentamos.
Afinal, se alguém tem dificuldades com sua autoaceitação, livrar-se dela e ser aceito pelo outros ao ser parte de um todo é possivelmente a forma mais eficiente de encontrar pertencimento. E tudo o que queremos é pertencer. E quando isso acontece e aquele líder se torna nosso chão, fica difícil se desvencilhar dele mesmo que ele cometa atrocidades. Mesmo que ele nos leve a cometer atrocidades.
Esse é o perigo.
É por isso que Tim faz o que faz ao final do filme.
É por isso que o entendimento e a aceitação das individualidades são fundamentais para a democracia.
A arte livre, que em sua raiz promove a diversidade, é uma das armas mais importantes na luta contra o fascismo.