Joaquin Phoenix consegue superar Heath Ledger?
O coringa de Heath Ledger é, sem sombras de dúvida, um caso inteiramente atípico na história da performance teatral, onde existe uma evidente entrega enraizada, possessão no sentido de entrelaçamento de todas ferramentas físicas e psicológica a fim de se criar um personagem que é composto unicamente pelo caos. Artisticamente falando, sem dúvida foi um privilégio absurdo para um profissional como o excelente Ledger ter em suas mãos possibilidades infinitas para compor uma personagem mergulhada na obscuridade da mente.
Abro com essa interrogação (bem caça-cliques, confesso) a fim de deixar explícito o meu fascínio por essa performance histórica e, mais do que isso, interrogar-me com a estranheza na afirmação do que parecia impossível: Joaquin Phoenix, onze anos depois, consegue uma atuação ainda mais impressionante sobre um personagem que, até então, permanecia absolutamente intocável. Não há necessidade da comparação, ainda que me tenha sido chocante essa certeza.
Joaquin Phoenix vem construindo uma carreira impressionante em termos puramente criativos, escolhendo personagens que entram em sintonia com um total desprendimento da sua figura enquanto estrela de cinema. Haja visto que o momento derradeiro para essa desconstrução de si foi justamente o período de dois anos onde abalou os noticiários os quais noticiavam a sua loucura. Explicando: o ator anunciou que estava desistindo da carreira para virar rapper. Sobre esse momento, escrevi em 2017:
Na divulgação de “Amantes” aconteceu algo que marcaria a quebra, literal, do ator: a entrevista com o David Letterman. Na verdade a entrevista é uma extensão de uma proposta artística, quase vanguardista, de criar um vínculo direto entre a arte performática e o arquétipo criado pela fama, incluindo todas as maravilhas que ela dá ao artista e todas as dores[…] Na verdade, esse evento único e corajoso era para promover um falso documentário, cuja pretensão era usar a imagem do ator como uma ponte para o seu rompimento. I’m Still Here, dirigido pelo Casey Affleck, trazia a intimidade de Joaquin, bem como a sua loucura cotidiana. É a jornada de um homem especial, forçado a ser comum, se entregando ao âmago do ódio pela realidade.
Tendo a acreditar que existe uma linha pontual na sua performance após essa desconstrução psicológica-profissional que atinge às ideias de Antonin Artaud, um dos principais e mais impactantes teóricos do teatro, cuja base é que a arte está relacionada com o caos. É só assistir The Master (2012) e perceber o quanto a atuação de Joaquin é desconfortável mas incrivelmente crível quanto ao estado psicológico em ruínas do seu personagem.
E ele escolhe muito bem os seus personagens desde então, de modo a alinhar com alguns traços característicos da sua naturalidade; parece que toda sua habilidade como artista é mentir da forma mais humana possível, com personagens enraizados na realidade. Em You Were Never Really Here (2018) é inacreditável a maneira como ele controla ódio dentro de uma fisicalidade grande, desajeitada, há uma cena onde somente com o movimento dos olhos, em uma posição diagonal, fica nítido a besta indomável do protagonista, até aquele momento, silencioso.
Joaquin Phoenix é um dos poucos atores que consegue conter sentimentos e a psicologia das personagens e, ao mesmo tempo, parecer incrivelmente gritante para o público. É grotesco a sensação da colisão entre performance e violência, principalmente quando esse choque acontece internamente, silenciosamente e subliminarmente, essa dança macabra acontece mais no que o ator esconde do que exibe. É inegável que dentro do novo Coringa (2019) existe muito do que Phoenix vem desenvolvendo ao longo dos anos, até mesmo a risada do personagem representa um descontrole extremamente doloroso; finalmente ele possui em mãos um personagem que não possui limites para o caos, seja físico ou mental.
Se chegamos até aqui nessa reflexão, fica óbvio para mim e para quem lê – creio – que a certeza que tive na introdução do texto passa pela admiração profunda pela visceralidade, mas o faço, nesse caso, com todo respeito ao passado. Se Heath Ledger recebeu a oportunidade da vida em se permitir ser possuído pelo coringa, agora é a vez do coringa ser possuído por Joaquin Phoenix.