O Mestre (Paul Thomas Anderson, 2012) - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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O Mestre (Paul Thomas Anderson, 2012)

A guerra perverte o coração dos homens, debilitando-os emocionalmente de forma que sejam excluídos do conceito de reinserção e continuidade da convivência social. A linearidade do dia a dia quebra, a perspectiva passa a ser invadida por uma mancha vermelha de sangue. A dignidade se perde. Os heróis-peões jamais conseguirão descansar novamente.

Dentro do contexto pós-Segunda Guerra Mundial, somos apresentados a Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um homem destroçado pela batalha e torto fisicamente e mentalmente pela vida. Quell é um ser em seu estado bruto, um verdadeiro primata, sem condições de adaptação onde quer que esteja, senão, só. O personagem possui uma imensidão de camadas a serem desmistificadas, pois soa como um retrocesso em forma humana, é o Big Bang da espécie; depois que salta os galhos da guerra, despeja-se nas ruas e se embriaga com gasolina, além de sem-teto ele é, prioritariamente, um sem-amor. O que pode acontecer a um sujeito que caminha com a sensação de não pertencer à nada, que não seja a total insânia?

Joaquin Phoenix, junto com Casey Affleck em 2010, lançou o documentário “I’m Still Here”, uma conclusão científica onde expôs a sua imagem e propôs ao mundo uma ruptura performática. Viveu dois anos atuando, se corrompendo, nesse ato de extrema potencialidade performática, uma atitude que o levou a ser barrado em qualquer filtro de padronização exigida por Hollywood. Entre 2010 e 2012 sentiu na pele as consequências de tal rebeldia, algo que com certeza despertou a atenção do sempre genial diretor Paul Thomas Anderson. PTA precisava de Joaquin Phoenix e esse encontro representou um milagre que só a arte pode apresentar.

Joaquin Phoenix interpreta Freddie Quell sob todas os artifícios físicos possíveis, rosto paralisado, loucura enraizada nas expressões selvagens e solta, o corpo torto, debilitado, o preciosismo performático é tanto que parece sujo. A naturalidade de um ser tão exagerado é extremamente relevante, Phoenix carrega em sua atuação dilemas profundamente filosóficos e humanos, toda história e sentimentos que nunca se verbaliza no filme. O ator sintetiza na carne, hoje, o que o escritor, dramaturgo e teórico do teatro viria a chamar de “teatralidade do caos”, onde o objeto se permite desconstruir por completo, fisicamente e emocionalmente, afim de servir como uma plataforma para uma possessão completa do personagem/criatura.

A cena inicial mostra o mar – algo que irá se repetir -, essa flexibilidade dos movimentos se aproxima muito do protagonista que se divide entre mestre e discípulo. Afinal, é justo afirmar que a relação de Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) e Freddie Quell (Phoenix) é incrivelmente dúbia, sugere a ideia de um seguidor a uma entidade, ao passo que vai regredindo e ficando cada vez mais íntimo, chegando ao ponto que Quell se torna um animal de estimação – a cena que Lancaster vai preso e desperta a fúria dele contra os policiais é prova disso.

A pergunta que se origina de forma tímida e ganha intensidade ao longo, reverberando como um grito em um túnel sem saída, é: quem é o mestre? mestre é aquele que domina outros homens e permite conhecer-te através do primitivo, selvagem e do perversamente obcecado sexual? mestre é o indivíduo torto, que caminha pela madrugada como poeira estrelar? mestre é a relação hermética entre eles?

Lancaster Dodd se interessa por Freddie Quell à partir de sua bebida (benção?) e em uma cena de plano e contra plano vemos uma interrogação onde atingimos juntos aos personagens o mais profundo degrau psicológico de um deles; desse momento em diante vemos a assimilação e contraste de mundos que dialogam, o primitivo invadindo o fausto; o selvagem invadindo a metrópole; o cru invadindo a artificialidade provocada pela crença fanática e, através dessa dinâmica de inversão, percebemos o quão o fanatismo é igualmente nefasto.

Freddie Quell é uma besta sem retorno, fruto da morte cega e sangue, gozo e cachaça. Do começo ao fim é violência; do começo ao fim é amor, no sentido desprender-se. É um não amado, cheirado, idolatrado, lambuzado, um verdadeiro performático. Um ser celestial que precisa se concentrar, afim de se decidir entre a parede e o vidro, entre ser homem e seu retrocesso histórico. A dicotomia entre insanidade e lógica, silêncio e destempero.

A mulher de areia, cujas pernas permanecem abertas, significa castelo, significa templo, o qual Quell planeja semear futuro e corromper seu passado de modo a endireitar-se. Ele continua a criar e ser. Ele se desarma.

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