Crítica | "Mogli: Entre Dois Mundos": e o nosso não pertencimento - Netflix
Mogli: Entre Dois Mundos
Cinema Mundial

“Mogli: Entre Dois Mundos”: e o nosso não pertencimento

Inicialmente planejado para estrear em 2016 mas adiado devido o lançamento da versão da Disney dirigida por Jon Faveau, “Mogli: Entre Dois Mundos” estreia na Netflix com a promessa de um filme mais sombrio e violento dentre as demais adaptações da famosa história do “menino lobo” o que poderia ser um diferencial que atraísse o público que há menos de 20 meses atrás já assistira uma outra versão live-action da obra.

Fazer comparações entre ambas as obras porém seria descabido haja vista serem obra com propostas bem distintas apesar de se basearem no mesmo material fonte. O filme recente, não apenas propõe um tom mais sombrio e cenas mais violentas (não verdade nem é tanto assim) mas explora mais os conflitos do jovem Mogli que busca a compreensão da sua identidade e de seu lugar no mundo. Mais do que isso, Mogli procura uma razão para sua existência e assim justificar todo esforço para sua sobrevivência.

A direção está a cargo de Andy Serkins, mais conhecido pelo uso de motion capture em filmes como “O Senhor dos Anéis”, “Planeta dos Macacos” e “Star Wars: Os Últimos Jedi”. Este é o segundo longa dirigido por Serkins que não foi a primeira opção para assumir a direção da obra. Alejandro G. Iñarritú foi cotado para a função mas desistiu por conflito de agenda (pelo menos foi o discurso oficial). Percebe-se durante a obra um preciosismo e em certa medita uma virtuose na direção, principalmente nas cenas onde personagens correm por entre galhos, troncos e rochas. Serkins trafega em campos seguros ao explorar o recurso do motion capture (escrevi esse texto explicando melhor a técnica) e focar nas expressões dos animais.

Entretanto, para que haja uma perfeita utilização do recurso, dominar a técnica de interpretação por si só não é o bastante.  É preciso uma equipe de efeitos digitais capaz de transformar aqueles pontos de capturas em imagens harmônicas e o mais naturais possíveis.  Em todos os 3 filmes da nova trilogia “Planeta dos Macacos” o recurso funciona de forma harmônica devido os traços similares entre os macacos e o seres humanos que os estavam interpretando. Já em “Mogli: Entre Dois Mundos”, alguns animais carregam consigo traços humanos que distorcem tais personagem. Um exemplo disso é a loba Nisha que recebeu a voz de Naomie Harris. Em certos momentos, fica até difícil distinguir um lobo de uma hiena.


Nisha em 
“Mogli: Entre Dois Mundos”

O primeiro ato da história, é focado exatamente na apresentação desse universo estranho e na construção dos dilemas de Mogli. A partir do segundo o ato, o filme ganha peso, tanto na sua soturnidade e violência quanto na carga emocional. O filme se arrisca ao tirar a história da selva e trazendo para si o tema da identidade e do pertencimento, afinal Mogli é um menino, um lobo, ambos, ou nenhum dos dois?

O fato do jovem ator Rohan Chand trazer consigo traços femininos (para os atuais padrões) com cílios bem definidos e cabelos longos pode ser um indicativo de uma mensagem maior por detrás história. Mogli o tempo todo precisa de se provar como digno de pertencer àquele grupo, e para isso, se adapta no que for preciso para atender aos padrões da alcateia. O mesmo acontece com diversas pessoas que por não se enquadrarem em um padrão pré-estabelecido precisam se “adaptar” para serem aceitas como participantes desse grupo. Um jovem afeminado (LGBTQI+ ou não) precisa se “adaptar” para pertencer ao grupo de meninos “testosterônicos” da escola. Uma garota gorda ouve a vida toda que ela precisa emagrecer pois como diria a Carolina Dieckman, “toda noiva quer casar magra para ficar bonita“. É uma imposição cruel que leva jovens a sofrimentos e traumas irreparáveis para a aceitação em certos grupos, e Mogli se via nesse dilema ao não ser aceito pelos lobos do grupo. 


Rohan Chand em 
“Mogli: Entre Dois Mundos”

Este salto temático coloca a obra em outro patamar mas não apaga o visual mal resolvido do primeiro ato. No final, “Mogli: Entre Dois Mundos” se mostra mais pesado do eu mesmo imaginei, mas não por que vemos um garoto franzino todo machucado e sangrando e sim por que estamos diante de um jovem arrebentado por dentro, destroçado pela crueldade do não pertencimento. Mogli e muitos outros garotos e garotas sangrarão internamente até que encontrem seu lugar no mundo que nunca deverá ser aquele nós lhes impomos. 

Deixe seu comentário