Crítica | Homem-Formiga e a Vespa
Homem-Formiga e a Vespa utiliza a liberdade de autor com descompromisso
Ficha técnica:
Direção: Peyton Reed
Roteiro: Chris McKenna, Erik Sommers, Paul Rudd, Andrew Barrer, Gabriel Ferrari
Elenco: Paul Rudd, Evangeline Lilly, Michael Peña, Walton Goggins, Bobby Cannavale, Judy Greer, T.I., David Dastmalchian, Hannah John-Kamen, Abby Ryder Fortson, Randall Park, Michelle Pfeiffer, Laurence Fishburne, Michael Douglas.
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2018 (05 de julho de 2018 no Brasil)
Sinopse: Após ter ajudado o Capitão América na batalha contra o Homem de Ferro na Alemanha, Scott Lang (Paul Rudd) é condenado a dois anos de prisão domiciliar, por ter quebrado o Tratado de Sokovia. Diante desta situação, ele foi obrigado a se aposentar temporariamente do posto de super-herói. Restando apenas três dias para o término deste prazo, ele tem um estranho sonho com Janet Van Dyne (Michelle Pfeiffer), que desapareceu 30 anos atrás ao entrar no mundo quântico em um ato de heroísmo. Ao procurar o dr. Hank Pym (Michael Douglas) e sua filha Hope (Evangeline Lilly) em busca de explicações, Scott é rapidamente cooptado pela dupla para que possa ajudá-los em sua nova missão: construir um túnel quântico, com o objetivo de resgatar Janet de seu limbo.
O papel do autor no grande esquema deste universo compartilhado da Marvel é algo sempre discutido a cada novo lançamento da casa. Se cada filme do estúdio nunca falha em entreter, a familiaridade estrutural vista em suas produções – a tal fórmula Marvel – é sempre notada. Esta necessidade de assimilação neste universo maior foi o que afastou o diretor Edgar Wright do primeiro Homem-Formiga. Idealizado por quase uma década, o projeto de estimação do diretor de assinatura forte e distinguível (responsável por obras como Todo Mundo Quase Morto, Chumbo Grosso e Scott Pilgrim) foi entregue, um mês antes de suas filmagens, para Peyton Reed, cineasta egresso de comédias muito interessantes (como o drama disfarçado de comédia romântica Separados Pelo Casamento). Assim, muitos dos problemas contidos no primeiro filme do diminuto herói estavam diretamente ligados a essa passagem de bastão: não era um filme de Edgar Wright (que escreveu a maior parte do roteiro), nem de Peyton Reed.
Três anos depois, e as produções da Marvel encontram-se num local interessante e de aparente progresso em relação à liberdade que dá aos autores. Thor: Ragnarok mudou completamente de tom sem muitas explicações, ignorando a atmosfera e seriedade falhos das produções anteriores do Deus do Trovão em prol das piadas e senso de humor particulares de Taika Waititi, Pantera Negra é realmente um filme de Ryan Coogler com um peso dramático e social nunca visto antes no estúdio e até mesmo Guardiões da Galáxia Vol. 2 possui uma liberdade (conquistada, é verdade) de James Gunn com seu material, isolando o filme do resto do universo para contar uma história pessoal. Desta forma, é seguro apontar que Homem-Formiga e a Vespa é um filme de Peyton Reed.
É curioso notar, então, como o diretor utiliza essa liberdade de autor, já que a continuação pode ser considerada mais simplória e despreocupada até mesmo que o primeiro Homem-Formiga. Isso pode ser observado na própria utilização dos poderes de Scott Lang (Paul Rudd) – o Homem-Formiga -, que agora possui uma parceira, a Hope Van Dyne/Vespa (Evangeline Lilly). Se o roteiro de Edgar Wright se apegava fortemente a um humor visual que vinha através da perspectiva de mundo de seu herói quando encolhido (com sequências que se passavam dentro de uma maleta e no quarto cheio de brinquedos da filha de Scott), Reed está mais interessado no humor de situação, como uma sequência numa escola onde o herói diminui não para o tamanho de um inseto, mas de uma criança. Tal cena denota perfeitamente a decepção de muitos com o novo filme: se a maioria dos diretores investiria numa sequência de fuga ao estilo de algumas vistas no primeiro filme (que prestava homenagem ao “filme de assalto”), onde nosso herói deve escapar sem ser notado, o cineasta corta para a próxima cena, onde o herói já escapou e tenta descer escadas de forma atrapalhada.
Escolhas narrativas como estas são conscientes e se repetem aos montes em Homem-Formiga e a Vespa, e não devem ser confundidas com falta de criatividade. Tais escolhas se tornam interessantes por evidenciarem como Reed encara os poderes de seu protagonista, menos como um super-herói de aventura e mais como uma possibilidade para a comédia de situação, como se ela por si só já fosse a o suficiente, já fosse punchline. Como Sim Senhor –um filme anterior do diretor – utilizava a premissa primária e absurda apenas para colocar Jim Carrey em esquetes que começavam e terminavam em si mesmas, Homem-Formiga e a Vespa faz o mesmo. Sai o artifício “dizer sim pra tudo” e entra o poder de encolher e aumentar; sai Jim Carrey careteiro e entra Paul Rudd careteiro.
E esta é a aparição de Paul Rudd como Scott Lang onde mais sente-se o ator à vontade, sem o peso de ser também um herói de ação – como a obrigatória cena ao estilo Marvel do herói sem camisa mostrando o tanquinho vista no primeiro filme. Sem o timing cômico característico de Rudd visto aqui, Homem-Formiga e a Vespa dificilmente funcionaria (a cena típica de troca de corpos onde o diretor diminui o peso da cena em prol da esquete onde Rudd imita a Janet Van Dyne de Michelle Pfeiffer é genial nesse contexto). Com a adição da Vespa vemos também outro tipo de humor, com olhar não só para o road-movie transformado em comédia romântica, como também a dinâmica típica de comédias Buddy Cop, onde Scott Lang se torna o fuck up da vez que só faz merda e Hope a heroína competente e responsável. Se mudanças de personalidade como esta, que se equivale àquela de Thor: Ragnarok – o Thor mais sisudo dos filmes anteriores se transformando num piadista mais alinhado com a persona de seu intérprete – evidenciam problemas sintomáticos de um universo compartilhado onde tudo deve ser consistente, elas ao menos proporcionam uma experiência cinematográfica mais agradável, já que o carisma de Paul Rudd visto aqui torna Scott Lang um daqueles personagens definidos e associados diretamente ao seu intérprete, como Robert Downey jr. e seu Tony Stark.
No mais, o que se vê aqui é uma extensão não muito interessante das dinâmicas de pais e filhos vistas no primeiro filme. Além daquelas vistas com Scott e sua filha ou Hank Pym (Michael Douglas, sempre competente) e Hope, a relação entre o doutor Bill Foster (Laurence Fishburne, sem muito o que fazer) e Ava (Hannah John-Kamen, careteira no mau sentido) são adicionadas à equação. Não existem grandes vilões, e sim empecilhos para os heróis em cada sequência de ação, que são competentes e empolgam. Se este é um de seus heróis de aspecto mais pulp (até mesmo em seu visual que evoca Kamen Rider), o descompromisso aqui é pensado e não vem das obrigações de estúdio. O reino quântico é encarado mais como algo saído de uma literatura Verniana onde explicações científicas não importam.
No fim, o mais interessante nessa sequência são justamente as suas descomplicações. Se muitos podem encarar a liberdade autoral que Peyton Reed utiliza aqui como tola ou medíocre, a verdade é que o diretor está mais interessado em exercitar os gêneros que trabalhou durante sua carreira. Para isso, transforma sua obra do gigantesco Universo Marvel num show de esquetes que se assemelha de muitas formas às comédias românticas – gênero diminuído cinematograficamente por excelência – às quais é frequentemente associado. Assim, Homem-Formiga e a Vespa se torna, ironicamente, um filme comprometido com o descompromisso.