Crítica: Touro Indomável (1980) - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Touro Indomável (1980)

Ficha técnica:

Direção: Martin Scorsese

Elenco: Robert De Niro, Joe Pesci, Cathy Moriarty, Frank Vincent, Nicholas Colasanto.

Nacionalidade e data de estreia: Estados Unidos, 13  de novembro de 1980

Sinopse: Bronx, anos 40.  O lutador Jake LaMotta demonstra toda a sua agressividade dentro e fora dos ringues.

 

Seu maior inimigo era ele mesmo

Rocky, um Lutador”, lançado em 1976, conta a história de um boxeador iniciante que sai da decadência ao lutar com o campeão dos pesos-pesados. O que vem a seguir para Rocky é fama, sucesso e respeito. O filme dirigido por John G. Avildsen e estrelado por Sylvester Stallone em 1976, foi um grande sucesso. Além de mostrar que os sonhos poderiam virar realidade, a obra tinha como intenção também mostrar os EUA como um país triunfalista que não se rendia aos escândalos e derrotas presentes ali nos tumultuados anos 70. A obra venceu 3 Oscars: Filme, direção e edição.

Em 1980, Irwin Winkler e Robert Chartoffos – produtores de “Rocky, um Lutador” –  resolveram mostrar o inverso da história protagonizada por Stallone. Dessa vez um boxeador seria mostrado indo da glória para a decadência. O filme é “Touro Indomável”, dirigido por Martin Scorsese e protagonizado por Robert De Niro. Porém, se Rocky Balboa era um personagem criado por Stallone (para quem não sabe, o roteiro é dele), “Touro Indomável” apresenta um personagem real. Jake LaMotta  (1922-2017). Violento, descontrolado e extremamente ciumento, LaMotta lutou nos ringues e contra aqueles que o amavam, e não conseguiu segurar a fama, o sucesso e o respeito.

“Touro Indomável” é sobre um lutador de boxe, mas não é propriamente um filme sobre um lutador de boxe. As lutas estão ali, os desafios dos adversários estão ali, os esquemas envolvendo beneficiadores estão ali; porém, a obra de Scorsese vai além, apresentando um personagem complexo em suas emoções, um homem incapaz de manter um auto controle que poderia ter feito dele um dos maiores ícones do esporte mundial.

Tudo parecia estar indo relativamente bem. LaMotta e seu irmão (Joe Pesci) batalham para se manterem no mundo das lutas nos anos 40; mas o casamento do lutador com uma jovem mulher (Cathy Moriarty) desperta uma série de brigas motivadas por ciúmes. LaMotta age com impulso violento, mas às vezes ele analisa friamente cada situação, no intuito de demonstrar pra si que tem motivos em espancar sua esposa. Assim como no ringue, em sua vida pessoal La Motta via as pessoas como adversárias, mas no final das contas seu maior inimigo era ele mesmo.

E é esse eterno embate do homem consigo mesmo que Scorsese tanto explora em “Touro Indomável”. Aqui tudo gira em torno de uma pessoa que não conseguia enxergar o amor de outras pessoas. Porque, antes de tudo, o que LaMotta via pela frente era fúria; uma fúria que o consumia pouco a pouco. Fúria capaz de derrubar seus adversários; fúria capaz de afastar sua esposa, seus filhos e seu irmão.

Não é um filme para você torcer pelo protagonista – como acontece em “Rocky, um Lutador” – mas para ver a lenta derrota de um homem. Mas o próprio LaMotta, depois de tudo que lhe aconteceu, apenas perceberá seu real declínio quando se vê preso em uma cela escura. Ali, em um instante de reflexão e arrependimento, ele esmurra a parede com toda a sua agressividade tão constante nos ringues, em um dos melhores momentos do filme.

O cinema mostrou comediantes de stand-up em filmes como “Lenny” (1974. Dirigido por Bob Fosse e estrelado por Dustin Hoffman e Valerie Perrine), sobre a vida real do comediante Lenny Bruce, mostrando seus excessos e dificuldades em seguir as regras; e “Palco de Ilusões” (1988. Direção de David Seltzer e estrelado por Tom Hanks e Sally Field), sobre pessoas que, tentando esconder suas frustrações, se lançam como comediantes em palcos de clubes e bares. Assim como essas pessoas, LaMotta também desenvolve um lado de insatisfação pessoal, recorrendo a apresentações baratas e pouco engraçadas. Além disso, o ambiente das apresentações está cheio de irregularidades, como exploração de adolescentes; fator que faz com que ele seja preso.

Em uma determinada cena, LaMotta, decadente, olhando para o espelho, imita o personagem Terry Malloy (interpretado por Marlon Brando) no clássico “Sindicato de Ladrões” (1954. Direção de Elia Kazan). LaMotta recria uma famosa frase dita por Brando, que poderia se aplicar ao próprio LaMotta, e talvez por isso mesmo ele o diga em uma autorreflexão: “Não foi ele, Charley, foi você. Lembra da noite no Garden, você veio ao meu camarim e disse: ‘Hoje não é sua noite. Vamos apostar em Wilson.’ Lembra? ‘Não é a sua noite.’ A minha noite. Eu podia ter acabado com Wilson aquela noite. E o que aconteceu? Ele levou o título na moleza. E ganhei o quê? Uma passagem só de ida para o hospício. Nunca mais fui o mesmo depois daquela noite. É como chegar ao topo, depois é ladeira abaixo. Foi você, Charley. Você era meu irmão. Deveria ter me protegido um pouquinho. Deveria ter me protegido um pouquinho só. Devia ter cuidado de mim um pouquinho, em vez de me fazer correr atrás de dinheiro sujo. Você não entende. Eu podia ter tido classe. Ter sido um desafiante. Eu podia ter sido alguém em vez de um ferrado, como sou. Vamos admitir… foi você, Charley. – Foi você, Charley”.

Scorsese apresenta uma obra crua, realista, violenta e repleta de imagens impressionantes. Não apenas as cenas de luta são marcantes (espetaculares e excepcionalmente bem filmadas), mas também as cenas do cotidiano. A abertura, ao som de Cavalleria Rusticana e filmada em câmera lenta, é fantástica, mostrando a preparação do lutador em um ringue vazio, com o público.ao fundo, como se tudo ao redor de LaMotta fosse uma névoa. Algumas cenas parecem um mosaico, com uma fotografia em preto e branco esplendorosa de Michael Chapman. Aliado a isso, a edição de Thelma Schoonmaker é fantástica, dando um ritmo pessoal e ágil à obra, principalmente nas impressionantes cenas de lutas. 

Na quarta das oito parcerias em longas-metragens com o diretor Scorsese, De Niro entrega uma atuação memorável, considerada por muitos uma da maiores de todos os tempos. Sua interpretação é tão convincente com LaMotta em seu auge nos ringues quanto nos momentos de decadência (onde engordou mais de 20 quilos). De Niro agarrou o papel com unhas e dentes, além de ajudar Joe Pesci e Cathy Moriathy a conseguirem seus papéis.

LaMotta – que morreu em setembro de 2017 – diria tempos depois que o filme o retratou tal como ele era de fato, mas que depois ele deixou de ser aquele “bastardo imprestável”. Ele lutou com boxeadores famosos como Sugar Ray Robinson e Michel Cerdan (este, morto em 1949 em um acidente aéreo, é retratado no filme “Piaf – Um Hino ao Amor”, de 2007).

“Touro Indomável” está entre os melhores trabalhos de Martin Scorsese, ao lado de obras como “Taxi Driver” (1976), “Depois de Horas” (1985) e “Os Bons Companheiros” (1990). Para muitos, é o melhor filme feito nos anos 80. Uma pena a Academia não tê-lo reconhecido à época, dando o Oscar de melhor ator para De Niro, além de melhor edição, mas ignorando melhor filme e direção (prêmios que foram para o hoje pouco lembrado “Gente Como a Gente”). Vale lembrar que naquele ano, o também excepcional “O Homem Elefante” (feito também em preto e branco) foi outro esnobado (este saiu de mãos vazias da premiação).

Mas o importante é que a obra-prima de Scorsese é hoje reconhecida como um dos melhores filmes de todos os tempos. Um trabalho excepcional que entra para o topo das melhores biografias já feitas pelo cinema, que inclui obras como  “Lawrence da Arábia” (1962), “Patton – Rebelde ou Herói?” (1970), e “A Lista de Schindler” (1993). Em todos estes filmes, o biografado é mostrado com suas qualidades e defeitos. No caso de “Touro Indomável”, Jake LaMotta só apresentava defeitos. E o próprio LaMotta foi um dos treinadores de De Niro, preparando-o para o maior papel de sua brilhante carreira.

 

 

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Resumo

Com “Touro Indomável”, Martin Scorsese realizou, sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos.

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