Crítica | Um Lugar Silencioso
O grito pela humanidade
Ficha técnica:
Direção: John Krasinski
Roteiro: Bryan Woods, Scott Beck, John Krasinski
Elenco: Emily Blunt, John Krasinski, Noah Jupe, Millicent Simmonds, Cade Woodward
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2018 (29 de Março de 2018 no Brasil)
Sinopse: Em uma fazenda dos Estados Unidos, uma família do meio-oeste é perseguida por assustadoras entidades hostis. Para se protegerem, eles devem permanecer em silêncio absoluto, a qualquer custo, pois o perigo é ativado pela percepção do som.
O desenho de som é um elemento fundamental para a eficiência de um terror, principalmente daqueles que propõem uma abordagem inicial de suspense mais psicológico, como este Um Lugar Silencioso. Com uma narrativa onde o som – ou a ausência dele – é praticamente um personagem, cada ruído, diegético ou não, causa estranheza justamente por sua escassez e se torna, a sua maneira, um jumpscare. Esses sustos são curiosos, já que as diferentes formas de como são utilizados aqui dividem muito bem os tipos de filmes que Um Lugar Silencioso ameaça se tornar.
Num mundo devastado, uma família tenta se manter em total silêncio para sobreviver à ameaça que ronda a sua casa e que pode atacá-los ao menor sinal de barulho. Compreendendo que neste tipo de filme ocasionalmente menos é mais, os roteiristas Bryan Woods, Scott Beck, e o diretor John Krasinski (que também vive o pai da família, Lee) optam por negar à audiência alguma explicação mais elaborada sobre a situação do que esta sinopse. O pouco que sabemos sobre o que aconteceu ao mundo vem através de exposições em manchetes de jornais, espalhados pelo porão da casa de campo onde a família Abbott vive. No mesmo local, um quadro branco com algumas anotações dita o necessário. “Quantos na área? 3 confirmados” e “Quais suas fraquezas?” estão entre elas, e se até mesmo essas essas exposições ocasionalmente soam convenientes, é porque Krasinski e seus roteiristas demonstram na maior parte de Um Lugar Silencioso um controle muito eficaz sobre o que querem mostrar.
A verdade é que Krasinski e seus roteiristas estão pouco interessados no desastre maior, reservando seus esforços a acompanhar as tentativas de sobrevivência dessa família, assim como a relação entre seus indivíduos após uma tragédia envolvendo o caçula Beau (Cade Woodward). Como nos melhores filmes de horror, o sobrenatural e o fantástico servem apenas de plano de fundo para o âmago humano. E nesse sentido de exposição o prólogo tem muito sucesso. Ambientada em sua maior parte num mercado abandonado, a sequência inicial estabelece rapidamente a personalidade das pessoas que acompanharemos ao decorrer dos curtos 90 minutos: o pai, Lee (Krasinski); a mãe, Evelyn (Emily Blunt); o segundo filho, Marcus (Noah Jupe) e a irmã mais velha – e com deficiência auditiva – Regan (Millicent Simmonds). Cada um deles anda nas pontas dos pés descalços à procura de mantimentos. A comunicação é feita por linguagem de sinais – e o fato de serem tão eficientes na mesma deve-se a deficiência auditiva de Regan – e quando o filho mais novo tenta trazer um brinquedo eletrônico, tem a permissão vetada pelo pai, já que o barulho vindo do brinquedo certamente atrairia as forças malignas que podem estar em qualquer lugar. Assim, são estabelecidas logo no início as regras básicas deste mundo de forma eficiente, e quando estas são quebradas – como vemos no desfecho deste prólogo – as consequências são graves, e temos mais uma convenção obrigatória do terror que é a punição, às vezes por simplesmente ser humano.
O foco familiar, aliado ao fato de que acompanharmos apenas 4 pessoas numa narrativa onde a fala é rara – e quando vem tem seu próprio peso e significado – sugerem um drama de estudo de personagem aos costumes do ótimo Ao Cair da Noite, o filme que ajudou a cimentar a tola expressão “pós-horror” – o filme de gênero que tem medo de ser “um filme de gênero”. É em síntese o terror gourmetizado. Este parece ser o maior conflito de Um Lugar Silencioso, que tenta equilibrar suas pretensões mais alinhadas a um “filme de arte” com uma necessidade de inserir este filme em um gênero. Abraçar as tradições do mesmo não é uma má escolha, mas quando a obra pisa em terreno conhecido do terror, é no mais comercial e enlatado. Ainda assim, existem também os contrastes tonais, que ficam ficam evidentes e contradizem inclusive a própria lógica daquele universo em determinados momentos. O que nos leva às diferenças dos já mencionados jumpscares e o uso elevado dos mesmos que, francamente, só podem ter vindo de insistências de produtores (não querendo apontar dedos, mas Michael Bay é um deles).
Perceba as diferenças: em determinado momento, o garoto Marcus derruba um lampião dentro de casa. Ouvimos apenas o som diegético (aquele produzido pelos próprios personagens dentro da narrativa) do objeto caindo no chão enquanto o vidro quebra, e temos o susto que vem não só pela intrusão do som numa cena que era conduzida sem trilha sonora de suspense premeditando o acidente, mas por ele não existir e terminar em si mesmo, por não ser desonesto com a audiência ao incluir de forma brusca uma música estridente com uma imagem aleatória, e principalmente por significar perigo para aquelas pessoas, enfatizando mais ainda o cuidado que deve ser tomado com qualquer emissão de som. Agora temos o momento em que um pequeno animal anda pelos milharais, e é subitamente pego por uma das criaturas. A computação gráfica da cena aliada ao som exagerado nos tira completamente do filme, não tem propósito narrativo (já que houveram várias situações que demonstrassem o perigo das criaturas) e parece incluída apenas para agradar uma audiência entediada e acostumada com Anabelle, e é fácil imaginar produtores insistindo para que mais jumpscares como este fossem incluídos.
Felizmente, nas cenas que se assemelham à do lampião – e existe uma quantidade considerável delas- o diretor John Krasinski mostra porque é uma voz promissora, e ele e sua diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen (Um Limite Entre Nós, A Caça) constroem sequências de extrema tensão, como aquela que enfoca um prego sobressalente no degrau de uma escada premeditando um acidente ou mesmo a condução da cena de parto de Evelyn, que beira ao insuportável -e a montagem é eficaz em alternar entre o parto e os esforços dos outros integrantes da família para que ele suceda, instaurando (com o perdão do trocadilho) um degrau a mais de tensão. Mais conhecido pelo seu personagem na série The Office e por outros trabalhos na comédia, o bom olho de Krasinski para o terror lembra Jordan Peele e seu Corra!, e cimenta ainda mais a ideia de que comediantes possuem um afinidade quase natural para esta linguagem (já que visualmente ambos possuem as mesmas noções de “setup” e “punchline”).
Ainda que parta da ideia de que o mistério é sempre mais eficaz do que qualquer imagem monstruosa no terror psicológico, Krasinski é consciente de que, se feita corretamente, a revelação visual desses males pode adicionar uma camada a mais de repulsa, e isso acontece aqui. É também quando Um Lugar Silencioso se entrega um pouco mais ao terror convencional de sobrevivência com sucesso. Ainda assim, há um claro apego ao drama daqueles personagens, e isto nos leva para outro dos destaques, a jovem Millicent Simmonds (que fez sua estreia no recente Sem Fôlego), que vive Regan. Deficiente auditiva também na vida real, a atriz possui uma sensibilidade e desenvoltura em todas as suas cenas, principalmente naquelas em que contracena com Krasinski. O apego aos pequenos momentos de humanidade são o que tornam os atos de horror – por menores que sejam, de seres humanos ou não – mais aterradores quando ocorrem, e aquele que envolve Lee e seu filho Marcus numa cachoeira é de uma sensibilidade comovente. São nestes momentos – que possuem coincidências temáticas inclusive com Fragmentado e sua ideia de que “os quebrados são os mais evoluídos” – que Um Lugar Silencioso alcança êxito.
Em determinado momento há o questionamento em relação à gravidez de Evelyn no filme. Por que ela escolheria trazer uma criança para aquele mundo? Apenas no parto, os gritos de dor da mãe e o choro de seu filho tornariam a logística da situação quase impossível. A escolha por manter a criança carece de qualquer lógica, e por isso é tão bela: nesse ato ilógico de amor, é como se o futuro da humanidade dependesse daquele parto, independente das possíveis punições. Essa poderia ser uma produção de alegorias carregadas, nesse “mundo em silêncio onde ninguém levanta a voz”, porém, ao se distanciar do “filme de arte” e encarar as situações vistas aqui sem medo do melodrama, Krasinski cria um híbrido de filmes.
Se essas misturas de gênero nem sempre soam homogêneas (vide a frase de efeito final que parece saída de outra produção), elas não comprometem o eficaz todo. E se o terror pune por humanidade, o rugido voraz que vem em momento chave de Um Lugar Silencioso contrapõe aquele que é feito em momento anterior para a destruição. Numa experiência cinematográfica onde o silêncio em tela é transposto para a audiência, vem o rugido da esperança contra o do desamparo, que carrega em si uma tristeza pelo destino de tal personagem, mas possui uma carga libertadora de alívio. É o grito pela humanidade, afinal.
Resumo
Se as misturas de gênero vistas em “Um Lugar Silencioso” nem sempre funcionam entre si, elas não comprometem o eficaz todo.