Crítica: Além da Ilusão (Planetarium, 2016)
Além da Ilusão honra o título em português. O Além vem fácil na camada superior, mas a Ilusão é sim o ponto mais forte e todo o mote aqui em camadas mais internas. Contudo, não se iluda: a proposta aqui é clara. Claramente turva, cheia de metáforas, subtextos e metalinguagens. Em suma: se você aprecia aquelas obras mais alternativas, carinhosamente – ou não – chamadas de “tênis verde”, então vai amar Além da Ilusão. Caso não esteja acostumado, pode ter problemas, ao mesmo tempo pode ser uma boa oportunidade para dar uma chance para esse tipo de filme.
O roteiro gira em torno de duas irmãs que fazem apresentações com base na mediunidade. E aí já começa a primeira Ilusão: não sabemos, e nem sequer as personagens, a veracidade do dom. Esse ar de mistério é reforçado pela montagem, em geral bem competente. Provavelmente você se sentirá perdido e desnorteado e é exatamente essa a ideia. Há momentos, emocionantes até, que temos certeza da comunicação de Kate Barlow (Lily-Rose Depp, filha do ator Johnny Depp) com o além, em outros os questionamentos são bem fortes e a certeza muda de lado.
Acompanhamos a jornada pelos olhos da irmã mais velha de Kate, Laura (Natalie Portman). E a história ganha mais um elemento quando André Korben ( Emmanuel Salinger) entra na trama. Ele é um diretor de cinema que tenta filmar um evento sobrenatural sem efeitos especiais. É nesse ponto que o elemento da metalinguagem se faz presente. As filmagens são no mínimo divertidas. Uma intrincada relação que mistura profissional e pessoal também se forma entre os três elementos, Kate, Laura e Korben.
O grande tema aqui é o desconhecido. Alguns cortes bruscos e transições não tão óbvias passam essa mensagem de forma visual. No texto, diversos elementos nos conduzem a tal conclusão. A áurea da guerra (o filme se passa entre os anos 30/40) que estar por vir se faz presente. Uma certa ironia dramática explora o fato de sabermos o que vai acontecer no período, enquanto os personagens vão sentindo aos poucos aquelas consequências. Os ruídos na comunicação com o além também dialogam nesse sentido.
Voltando à questão da ilusão, uma ferramenta cinematográfica importante fica por conta dos espelhos. Diversas passagens nos são mostradas através deles, em um trabalho de preciso da câmera. Tais planos são relativamente comuns, usados uma ou duas vezes em um filme, aqui a repetição marca a intenção dúbia da proposta e assim merece o elogio. O próprio uso do cinema como motor não é gratuito – no original o papel do Korben era de um banqueiro e não cineasta, a adaptação elevou o simbolismo nesse sentido. Não à toa é comum ouvirmos que o cinema (ou a arte) é uma mentira que nos deixamos ser enganados – e gostamos.
Para toda essa ambientação, fazia-se imprescindível uma boa mise en scene. E nesse quesito, Além da Ilusão é nada menos que perfeito. Os figurinos, cabelo e maquiagem (este último proporcionando um hilário/irônico diálogo) estão mais que competentes. No entanto, a cenografia dá um show ainda maior. Tudo isso precisamente envolto por uma fotografia e coloração que nos transportam não só para a época, mas especialmente para os sentimentos idealizados. Repare nas várias rimas visuais e textuais decorres dessas opções. Ou então nas sutis movimentações de câmera que distorcem a realidade (aliás, o que é real aqui?). A direção de Rebecca Zlotowski vai muito melhor que o roteiro (também escrito por ela).
Além da Ilusão não é um filme fácil. Ele te desafia a todo instante e talvez vencerá o combate. Contudo, vai recompensar quem ainda assim se habilitar nessa batalha de signos. Como é dito em um dado momento no longa: “Fala-se em escrever poesia, mas isso está errado: a poesia nos escreve”. Tal citação pode ser a metonímia de Além da Ilusão. Uma produção, trocadilho à parte, com alma.