Crítica: Elle
No perverso Elle, Paul Verhoeven continua sua exploração de gêneros cinematográficos e sátiras.
Ficha técnica:
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke, Harold Manning
Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny
Nacionalidade e lançamento: França, Alemanha, Bélgica, 2016 (17 de novembro de 2016 no Brasil)
Sinopse: Michele aparenta ser indestrutível. A mente por trás de uma inovadora empresa de video games, ela tem a mesma postura rígida tanto na sua vida pessoal como profissional. Mas a vida de Michele muda para sempre quando ela é atacada em sua própria casa por um criminoso desconhecido. Quando ela decide, de forma resoluta, que irá rastrear e derrubar seu agressor; ambos são sugados para um perigoso jogo de curiosidade e suspense – um jogo que pode, a qualquer momento, sair de controle.
De sátiras o cinema de Paul Verhoeven está cheio: seja em Robocop, O Vingador do Futuro, Tropas Estelares e até mesmo no infame Showgirls, os filmes do cineasta sempre funcionaram em uma espécie de “realidade aumentada”, num universo estilizado onde as pessoas não agem de forma totalmente “normal”.
É nessa anormalidade que Elle, primeiro filme do diretor lançado nos cinemas comerciais em 10 anos, começa: após ser atacada em sua própria casa e sofrer um violento estupro, a protagonista Michele Leblanc (Isabelle Huppert) se limpa, recolhe os pratos e copos quebrados no momento do ato, e age como se nada tivesse acontecido. Num jantar com os amigos, ela revela o acontecido, de forma quase corriqueira. Um dos colegas pede para o garçom esperar um pouco antes de abrir o vinho, num momento até cômico. Tal momento, constrangedor – até pelo leve riso extraído do comentário sobre o vinho – pega o espectador de surpresa. É nessa mistura de gêneros e tons que Verhoeven sempre ancorou seus filmes, e em Elle (que é baseado no livro “Oh…” do Francês Philippe Djian) não é diferente.
Se a sinopse inicial – uma mulher que sofre um abuso, oculta este fato das autoridades e tenta encontrar o estuprador – sugere um filme de vingança, essa mistura já mencionada de tons leva o filme a territórios não imaginados. Quem disse que Michele quer encontrar o estuprador para obter vingança de fato? A protagonista tem seus próprios – e intrigantes – propósitos, afinal.
Com a trilha orquestrada praticamente incessante de Anne Dudley, o filme é construído num tom farsesco de suspense, o qual Verhoeven explora com imensa competência. A cena do abuso, por exemplo, em nenhum momento soa sexualizada ou fetichista como muitos esperariam que o diretor de Showgirls fizesse. A verdade é que Paul Verhoeven sabe o que faz, e de cinema de gênero ele entende. A cena em questão, com os sons de socos exagerados, à beira do cartunesco, planta inquietação e dúvida no espectador por deixá-lo justamente desorientado em relação a o que sentir, já que o filme opera sempre fora do tom esperado, cimentando ainda mais essa ideia de farsa, de ironia (e a equipe do design de som merece destaque por sutilezas como estas).
Conforme o enredo se desenrola e as intenções de Michele ficam cada vez mais nebulosas, nos encontramos envoltos num jogo de gato e rato entre Michele e todos ao seu redor. Seja com a ausente mãe, seus colegas de trabalho ou com o próprio estuprador, a protagonista encara toda situação como um jogo, seja de poder, mental ou sexual. E nessa narrativa de “jogos”, não é coincidência que a personagem trabalhe numa empresa de Video Games de fato, e Verhoeven e o roteirista David Birke não poderiam ser mais literais do que isso. O jogo se estende extra-relações de personagens, já que o cineasta brinca – e acima de tudo, provoca – o espectador constantemente, como ao enquadrar, logo após o abuso, a protagonista no canto esquerdo inferior do quadro (leia-se: o mais fraco da tela), passando a ideia de fragilidade e de desamparo, apenas para quebrar esta ideia com os atos futuros de Michele ao decorrer da trama.
E a Michele de Isabelle Huppert é realmente o maior triunfo de Elle. A veterana francesa (e espécie de musa do cinema de Michael Haneke) entrega uma performance cheia de nuances e sutilezas, com uma complexidade sexual e sádica que ecoa os mesmos atos autodestrutivos de sua personagem em A Professora de Piano, também de Haneke. A dualidade de sua performance é notável, e nunca sabemos quais são suas reais intenções.
Retratando todos os homens da projeção como seres patéticos e subordinados de Michele (o colega de trabalho usado apenas para fins sexuais, o filho adulto com uma dependência quase infantil, o próprio estuprador), o diretor faz, mais que uma história de empoderamento feminino, um conto de autodescoberta, o que é notável logo na cena após o abuso, com a forte e simbólica imagem da protagonista de molho em uma banheira com o vermelho do sangue transparecendo na espuma branca, enquanto a mesma esboça uma expressão que sugere uma espécie de curiosidade doentia.
No fim, Paul Verhoeven, em excelente retorno, mostra como continua afiado em suas explorações de gêneros cinematográficos, realizando uma obra que transita entre suspense, drama e até mesmo humor negro. Nela, o jogo de gato e rato se estende além das relações dos personagens e acontece entre o cineasta e o espectador, e o filme, inclusive, daria uma interessante dobradinha com outra obra complexa que divide algum dos temas desta, o brasileiro O Silêncio do Céu (2016).
Elle é Verhoeven clássico: temas polêmicos e complexos, sátiras, e as deliciosas perversões que vemos nas melhores – e mais provocadoras – obras do cineasta.
Resumo
Paul Verhoeven, em excelente retorno, mostra como continua afiado em suas explorações de gêneros cinematográficos, realizando uma obra que transita entre suspense, drama, comédia e nunca é tão simples como parece. Nela, o jogo de gato e rato se estende além das relações dos personagens e acontece entre o cineasta e o espectador