#RochasEmDebate – As representações da Mulher Negra no Cinema Brasileiro.
Desde sua estreia em 23 de março de 2015, a “Coluna Rochas” levanta o debate que envolve o cerne estrutural do cinema brasileiro, e como a MULHER NEGRA está inserida nesse cenário de construção e consolidação identitária de nossa cinematografia:
- 28 de julho de 2015 com o texto “Estereótipos Raciais Femininos no Cinema Brasileiro” (https://cinemacao.com/2015/07/28/rochas-15-o-estereotipo-racial-feminino-no-cinema-brasileiro/);
- 10 de agosto de 2015 com o texto do especial “A Mulher Negra no Cinema Brasileiro – Sabrina Fidalgo” (https://cinemacao.com/2015/08/10/a-mulher-negra-no-cinema-brasileiro-por-sabrina-fidalgo/);
- 05 de outubro de 2015 com a segunda entrevista do especial “A Mulher Negra no Cinema Brasileiro – Ana Flavia Cavalcanti” (https://cinemacao.com/2015/10/05/a-mulher-negra-no-cinema-brasileiro-por-ana-flavia-cavalcantti/).
A temática contemporânea e cada dia mais urgente sempre vêm à tona, e ainda que ocorra lá fora, como foi o caso do último Oscar e do Emmy com o discurso da atriz Viola Davis, os sons sempre reverberam aqui. Os fatos ganham repercussão nos mais distintos meios de comunicação, provocam manifestos e reações das mais consistentes às mais rasas e midiáticas (o “Somos Todos Macacos” não me desce até hoje), mas na prática o espaço parece cada dia mais demarcado e a realidade sem sinais claros de mudança.
Mês passado o debate em torno da mulher negra no nosso cinema nacional voltou à cena, em um seminário da disciplina de “Africanidades e Identidades Afro-Brasileiras” que apresentei no curso de pós-graduação em Estudos Culturais que curso na UNIJORGE (Centro Universitário Jorge Amado), aqui em Salvador, uma das capitais brasileiras com a maior presença de negros em sua população.
Com base nos textos e entrevistas publicados anteriormente nesta coluna, em um paralelo histórico com o Cinema Africano (pesquisado no livro “Tudo sobre Cinema” de Philip Kemp), e principalmente, no que testemunhamos nas telas dos cinemas soteropolitanos e Brasil a fora, fizemos uma exposição direta e provocativa do escroto sistema de segregação, entranhado de forma orgânica e naturalizada em nossa produção cinematográfica.
“O CINEMA BRASILEIRO É BRASILEIRO MESMO?”
Esse foi o questionamento que nos fizemos nas primeiras etapas de produção do trabalho, e achamos imprescindível para iniciarmos o debate.
- As narrativas construídas e projetadas nos filmes que ocupam as grandes salas de exibição em todo país refletem um recorte realista fidedigno e harmônico da sociedade brasileira?
- Essas narrativas e seus personagens são semelhantes aos sujeitos e os contextos do Brasil de hoje?
Tais interrogações exemplificam alguns de tantos outros questionamentos, cujas respostas dialogam entre si e desenham todas as predileções dos bastidores do cinema.
Eis que uma das frases ditas pela brasileira, carioca, mulher, cineasta e negra, Sabrina Fidalgo, em uma entrevista comigo feita por Skype, ajuda a ilustrar de forma mais prática o cinema brasileiro e todas as nomenclaturas utilizadas para delimitar territórios e direcionar discursos:
“… A gente não faz cinema negro, fazemos o cinema brasileiro. O cinema convencional é que faz o cinema branco. O cinema brasileiro de hoje tá muito centrado nessa questão pós-colonial, de uma representação eurocêntrica. O audiovisual brasileiro é completamente branco, branco com todas as aspas”.
As aspas da Sabrina são emblemáticas e ilustram a inversão classificatória da produção artística não só do cinema, mas da TV e do teatro. Quando a parte predominante se segmenta e a minoria ganha o status-quo de representar todo um legado histórico rasurado, há deturpações de ordem social, econômica e cultural.
As perguntas podem ser atualizadas e substituídas, mas o resultado explicitará uma mesma realidade.
- Geralmente quais os personagens são destinados às atrizes negras?
- Quais cineastas brancos costumam escalar atores negros nos seus filmes e retratar questões relacionadas às causas raciais e de identidade étnica?
- Qual a etnia das cineastas e produtoras que abordam questões envolvendo a mulher negra em suas narrativas?
O discurso cinematográfico é um reflexo intrínseco do local de fala do sujeito. Em uma livre e abreviada adaptação dos “05 Ws do jornalismo” (Quem? Quando? O quê? Como? Onde? Por quê?), os discursos construídos e reproduzidos, são oriundos de “quem fala” e justificados – ou não – pelo local de fala desse indivíduo. A cineasta Vera Egito, em entrevista dada a jornalista Sonia Racy, no dia 07/03/16 no Estadão (http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/as-mulheres-fortes-povoaram-a-minha-construcao-como-pessoa/), cita essa demarcação funcional que as mulheres sofrem no mercado audiovisual, e que por consequência, delimita os campos de abordagem do produto final:
“Quando uma mulher lidera ou escreve um projeto, há personagens femininas fortes e questões que não são só sobre homens… É por isso que batemos o pé sobre a liderança do projeto. Porque é a liderança que vai trazer essa multiplicidade”.
Sem liderança compartilhada não há igualdade na participação do mercado, e o espaço das mulheres negras é injustamente restringido, fazendo com que os recortes sociais sejam os mesmos, os contextos continuem unilaterais e enviesados, e as representações femininas tenham cor, classe social e meritocracia.
O mesmo mercado que revelou grandes atrizes negras como Ruth de Souza, Zezé Mota, Léa Garcia, Maria Ceiça, Ana Carbati, Taís Araujo e Gabriela Moreyra, por exemplo, é a mesma indústria que reduz atrizes em um vergonhoso revezamento de papeis de empregadas domésticas, escravas e moradoras da favela.
No dia 20 de abril deste ano, a sessão “UOL VÊ TV”, assinada pelo jornalista Maurício Stycer em seu blog no UOL, fez um levantamento assustador da repetição de atrizes negras nesses mesmos papéis – entenda-se empregadas domésticas – nas telenovelas (http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2016/04/20/uol-ve-tv-a-sina-de-uma-atriz-ser-empregada-domestica-na-tv/).
O fado da reportagem é representado pela atriz Olívia Araújo que desde 2012 é escalada com regularidade para trabalhos na TV e no cinema, onde em todos eles interpretou empregadas domésticas: “Cheias de Charme” (Globo-2012), “Gonzaga – De pai para filho” (2013), “I Love Paraisópolis” (Globo-2014), “Chiquititas” (SBT-2014/2015) e “Liberdade, Liberdade” (Globo-2016). Cinco trabalhos, cinco empregadas domésticas. Novelas ou minisséries, empregada doméstica. Globo, SBT ou nas demais emissoras de TV, empregadas domésticas.
Olívia é apenas uma entre tantas outras atrizes que só são chamadas para personagens com fenótipos pré-determinados, que ganham menos em relações aos atores, e erguem elefantes brancos em moldes de estatuetas douradas nas premiações que só celebram o talento dos indicados brancos devido a escassez de papeis relevantes e fortes para atrizes que o cinema “convencional” não contempla.
A sina da mulher negra na cena cultural do Brasil – país onde não há racistas (?) – é fruto remanescente das entranhas coloniais, do famigerado modelo escravocrata, do apagamento disfarçado e de um arquétipo de produção misógino, machista, caucasiano e míope.
O debate continua no próximo texto.
Aguardem!