O eterno adiamento da satisfação, ou como relacionar Bauman e a Marvel
Um dos pensadores contemporâneos mais importantes para a compreensão do mundo em que vivemos é Zygmunt Bauman. Confesso que não li tanta coisa que o sociólogo polonês publicou, mas ainda assim sou um grande fã e adepto de suas teorias. É difícil não sê-lo, já que ele compreende o mundo pós-moderno como poucos (o filme brasileiro “Ponte Aérea” faz referência à obra dele).
Assistir ao filme “Homem-Formiga” foi uma espécie de gota d’água para compreender os filmes do universo Marvel como uma síntese da sociedade atual.
Explico-me.
Embora não seja um filme perfeito, “Homem-Formiga” é uma comédia de ação honesta que funciona como produto de entretenimento. Mesmo assim, o filme não se contenta em fechar-se em si mesmo, e reproduz o que os filmes anteriores da Marvel vêm fazendo de forma insistente e incisiva: prometer algo maior para depois. As cenas pós-créditos, as promessas de encontros de personagens ou de futuros desdobramentos de conflitos apenas nos prometem algo maior, melhor e mais extraordinário para depois. Desta forma, em vez de aproveitarmos o momento e nos deleitarmos com um bom filme, saímos do cinema com muito mais promessas de satisfação futura do que uma satisfação presente. É como se fôssemos a um restaurante que apresentasse pratos razoáveis e um “menu do futuro” com as receitas que o chef desenvolverá quando ali retornarmos.
Zygmunt Bauman cita essa eterna busca por uma satisfação plena de forma genial em seu livro “Modernidade Líquida” (página 37 da edição de 2001, publicada pela Jorge Zahar Editor no Brasil):
“Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover não tanto pelo ‘adiamento da satisfação’, como sugeriu Max Weber, mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranquila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes”.
É interessante notar que Bauman não diz que nós, enquanto seres humanos pós-modernos, adiamos a nossa satisfação: é a sociedade altamente mutável e “em processo de evolução” que sempre cria novas possibilidades de prazer, e isso combina perfeitamente com a forma como a Marvel faz seus filmes. A lógica é muito parecida em novelas, séries e outros produtos: não vemos para saborear lentamente uma obra de arte, apreciar uma boa história ou ter contato com emoções novas: queremos saber o que vai acontecer e receber uma proposta de algo melhor no futuro: uma guerra civil, um novo herói, uma nova possibilidade de trama.
“Homem-Formiga” repete isso e pode ser o estopim para muitos: terminamos os créditos finais vendo um Buck Barnes que possivelmente vai depender de Scott Lang, participar das próximas batalhas, etc. A consumação está sempre no futuro. É como um gozo mediano que sempre promete um orgasmo pleno para depois. Continuações, sequels, prequels… ninguém quer o eterno e perene, mas o paradoxo do finito que promete o infinito.
Desta forma, não podemos acusar a Marvel de não criar produtos de seu próprio tempo. São filmes que funcionam como os relacionamentos entre as pessoas, a compra de produtos e o prazer de viver: são leves e fluidos, não perduram e não oferecem o máximo de prazer porque sabe-se que logo acabarão e serão transformados em coisas novas.