"O sal da Terra" (2014) - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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“O sal da Terra” (2014)

Compreender o que está por trás de fragmentos e imagens que de um ponto de vista vemos deslumbrantes retratos e temos sensações tanto estranhas como esquisitas, de aconchego, de desespero, de medo; é difícil a partir do momento que vemos um filme documental sobre a vida humana retratada em fotos. Sebastião Salgado é quem protagoniza o filme, é ele quem nos transmite tanta sinceridade, amor, ódio, fúria, desgosto, paixão – adjetivos os quais são pequenos perto da imensidão que se enquadra o seu trabalho. Através de sua câmera ele nos mostra o oceano de disparidades com as quais, nós – seres humanos, nos deparamos diariamente, contudo, com um lâmina de esquecimento e de banalidade.

Em certa medida pensei muito à respeito das fotografias que vi na tela do cinema. Após um tempo de maturação comigo mesmo, me deparei com alguns pensamentos os quais me levaram para alguns escritos filosóficos os quais poderiam ter um nexo de ligação com os temas abordados por Sebastião Salgado, e um deles, pertence aos escritos de Hannah Arendt por exemplo. Em seu livro Eichmann em Jerusalém, a pensadora faz uma reflexão sobre a banalidade do mal evidenciando que os seres humanos são capazes de realizar ações inimagináveis que, mesmo sem nenhuma motivação maligna, podem ter como consequência destruição e morte.

Arendt faz uma análise da massificação que levou a implantação do processo de tecnificação, industrialização e consequente racionalização das decisões acerca das organizações humanas. Esse processo, originado na idade moderna e que atinge seu apogeu na contemporaneidade, torna possível perceber que em detrimento da evolução humana, o critério que passa a reger o desenvolvimento social e o progresso técnico é a inovação tecnológica. As discussões e deliberações, próprias do âmbito técnico e político – lugar onde o vínculo entre os homens se estabelece, através da articulação e do interesse pelo mundo comum e por si mesmos, são substituídas pela tecnologização, pela formalização e pela automatização dos processos decisórios.

A funcionalização e a “burocratização” que tomam o lugar da deliberação política provocam, segundo Arendt, uma progressiva alienação marcada pela eliminação da possibilidade da motivação e legitimidade da ação humana. O homem passa, então, a fazer parte de um sistema de racionalização, onde o mecanismo técnico-burocrático-sistemático, presente nos processos implantados nas instituições reduz sua atuação e faz com que ele se comporte e funcione como mera peça de uma engrenagem. A instauração desse sistema e suas implicações na vida, na sociedade e na política contemporâneas, desvelando a percepção de que poder e dominação, agora mediados pelos processos técnicos, passam a atuar sobre aspectos da vida humana, tais como: informação, relações, produção e cultura; sendo deslocados da função de controle de consciência e vontade dos homens para o controle das condições e possibilidades de suas ações. Por conseguinte, viver sem compartilhar o mundo com os outros, juntamente com a rapidez com que os procedimentos técnicos e os processos burocráticos dominam tudo, torna a busca de significação uma tarefa muito difícil para o homem. O praticante do mal banal não se reconhece como ser dotado de vontade. Como um autômato, abre mão de sua habilidade de comunicar o que vê e sente e já não se vê mais como um ser dotado de vontade.

Por que toda essa discussão à respeito da condição humana e da breve questão acerca da banalidade do mal? Por que Sebastião Salgado, através de seu trabalho com a fotografia, pôde entender por si só os abusos que os próprios homens cometem em detrimento de outros mais fracos. A fome, a pobreza, a desigualdade, a falta de higiene, habitação e muitos outros problemas, são marcos históricos da ação do homem no mundo deixando rastros tremendos de tristezas e de lágrimas. Entretanto, a solução encontrada por ele, não foi a desistência ou mesmo somente a retratação do que ocorre ao redor do planeta, pelo contrário, foi demonstrar o quanto podemos restaurar o que foi perdido e dar vida ao que está morrendo. Nos deu esperanças para continuar à frente de nosso tempo e promover um futuro melhor e mais saudável para todos nesse lugar o qual vivemos juntos, mesmo que separados.

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