Crítica: Trilha sonora para um golpe de estado
Trilha sonora para um golpe de estado – Ficha técnica:
Direção: Johan Grimonprez
Roteiro: Johan Grimonprez, Daan Milius
Nacionalidade e Lançamento: Bélgica, França, Países Baixos, 2024
Sinopse: Jazz e descolonização se entrelaçam nessa montanha-russa que reescreve o episódio da Guerra Fria que levou os músicos Abbey Lincoln e Max Roach a invadir o Conselho de Segurança da ONU em protesto contra o assassinato de Patrice Lumumba.
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Talvez a melhor definição da divisão por cenas de “Trilha sonora para um golpe de estado” seja não pela sequência, algo tradicional dentro da narrativa do cinema, e sim pelos acordes. Afinal, eles são a base para a construção sensorial que o diretor Johan Grimonprez vai usar para transportar a ideia que a própria obra busca corroborar. E, aliás, é uma tese até bem simples: de como o jazz tem sua participação política fundamental na independência do Congo – seja como uma afronta a Bélgica e a ONU, seja como maneira de propaganda.
Tudo isso gira sob o personagem principal, Patrice Lumumba, eleito como primeiro-ministro do país recém “nascido”. A situação complexa de influência e controle europeu e dos Estados Unidos na África são o pontapé inicial para o desenvolvimento, que tem realmente como foco chegar até a reunião do Conselho de Segurança da ONU de 1961, quando os músicos de jazz Abbey Lincoln e Max Roach invadiram para protestar pelo assassinato de Lumumba. Como que a situação chegou até esse limite? E, mais importante de tudo, de que forma esse estilo musical esteve tão integrado a esse momento? Essas são algumas das questões levantadas pelo cineasta em busca de encontrar respostas.
Mas não espere de “Trilha sonora para um golpe de estado” um documentário comum. Na realidade, sua base cênica se mistura sempre com as imagens de arquivo dos grandes acontecimentos históricos, apresentações aleatórias de grupos de jazz (que sempre embalam a trilha de fundo, desde Louis Armstrong e John Coltrane até Nina Simone) e ainda uma narração no fundo. Esses elementos sempre estão em uma intensa conurbação, na qual cada um se sobrepõe ao outro e eles são sempre usados a fim de discutir algum outro aspecto. A narrativa, dessa maneira, é sempre complementar.
É fundamental a forma como Grimonprez usa da Guerra Fria para explorar outros aspectos, longe da discussão tradicional entre EUA e União Soviética. Aqui, ele demonstra como é um momento fundamental para os países africanos e, em parte, asiáticos, na busca por uma voz política internacional. Nesse contexto, o Congo aparece como algo particular, visto que tem um forte controle belga histórico e ainda foi alvo de diversos massacres ao longo do tempo. Porém, mais uma vez, essa está longe de ser a busca que o longa quer abordar. Sua ideia é compreender como as influências sobrevivem dentro de um universo da política internacional. Por isso, a ONU se torna um elemento tão relevante – como foi no pós Segunda Guerra – para ser um ambiente de chancela. Esse grupo de países, a grande maioria novos, busca sempre se unir formando uma aliança que desagrada os maiores blocos, em especial os europeus.
Nesse contexto, Lumumba é uma peça-chave, visto que vira uma grande liderança da região e, ao mesmo tempo, um líder político capaz de retirar as influências externas do Congo. Ou seja, alguém que conseguiria fazer o país caminhar com as próprias pernas, finalmente. Entretanto, justamente essa sua visão de defesa da região e contra as influências, se torna um problema aos países mais ricos, que vão atrás de minar sua influência, o prender e, ao fim, até mesmo assassiná-lo.
Esse é um ponto central, já que, a partir dele, há também uma tentativa dos Estados Unidos de pautar a construção desse novo país. Dessa forma, poderia ser sim feito algo do zero, porém que precisasse ter alguma influência de algum lugar. Com poderio cultural mundial, os EUA passaram a disseminar o jazz como parte fundamental dessa imagem de um novo local – o filme deixa claro a conexão do gênero musical com os grupos negros nos Estados Unidos, algo fundamentado desde seu nascimento. Há uma grande parcela do longa em dar destaque para a chegada de Louis Armstrong, quase como se fosse um papa, dentro da África, capaz de arrastar multidões.
Nesse sentido, também entra em voga outro aspecto substancial de debate em “Trilha sonora para um golpe de estado”: o poder dos discursos. Fica evidente sobre como a influência só pode ser fundamentada dentro desses locais se for possível consolidar uma narrativa no discurso capaz de conseguir isso. As filmagens de muitas falas de líderes africanos e asiáticos na ONU, além das entrevistas com os artistas de jazz em excursão pelos mesmos territórios, reforçam esse papel da tentativa de controle de narrativa. Ao mesmo tempo que o primeiro-ministro do Congo é visto quase como alguém a parte, incapaz de praticamente se pronunciar, literalmente uma figura calada por esse cosmo.
É um filme que consegue justamente encontrar na maneira de contar a sua história em conexão com o que se quer abordar tematicamente. A loucura da montagem de Rik Chaubet é um desses aspectos fundamentais. Ela dá o tom musical da própria encenação, ao mesmo tempo que cria esse caos político e de influências. Em certo sentido, é quase como se estivéssemos assistindo um noticiário em uma TV, cheia de cores e sentidos, porém aonde todas as imagens anseiam por ser uma tentativa de controle.
Da mesma forma que há essa busca por parte dos governos internacionais para com o Congo, existe a tentativa de Johan Grimonprez de fazer o mesmo com “Trilha sonora para um golpe de estado”. Porém, se por lá era algo mais implícito e que se usava de diversas influências, o diretor aqui brinca no próprio discurso sobre o poder de criação de narrativas com essas mesmas imagens. Nesse sentido, até lembra o curta de Jean-Luc Godard, “Hail, Sarajevo”. Não importa o que está sendo mostrado, mas sempre de como se mostra aquilo.
Nota: 4/5