Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro, mas qual a importância?
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Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro, mas qual a importância desta conquista?

“Nós somos cegos para a nossa própria cultura, mas, ao mesmo tempo, queremos que o mundo veja o que ele está perdendo.” – Fernanda Torres

A frase acima é de uma atriz brilhante que entende o peso e a importância da arte que exerce e, mais ainda, sabe que é fruto dessa cultura, pois há décadas vem provando que sua carreira tem inspiração na mãe, mas que ela, por si só, tem alçado voos muito únicos.

Na noite de ontem (05/01/2025), o Brasil se emocionou ao ver uma atriz brasileira, Fernanda Torres, levando o Globo de Ouro com sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. A simbologia dessa vitória invoca um orgulho e uma excelência que poucas vezes nos emocionaram tanto como nação.

Mas por que uma vitória no Globo de Ouro emocionou tanto? Qual o tamanho dessa conquista e por que ela ganhou tanta importância?

Para começar, acho que existem três aspectos importantes que podemos destacar: Simbólico, Político e Cultural.

1) Simbólico:

O Globo de Ouro (Golden Globe Awards) é uma das premiações mais prestigiadas de Hollywood. Ele entrega estatuetas para artistas de cinema e televisão que se destacaram no ano. O evento é realizado desde 1944 e a votação é feita pelos membros da Golden Globe Foundation, um grupo composto por jornalistas internacionais que cobrem a indústria do entretenimento em Hollywood.

Nestes 81 anos de premiação, o Brasil já teve representantes lá. A própria Fernanda Montenegro, em 1999, foi indicada ao Globo de Ouro por sua performance em Central do Brasil. Porém, o feito de Fernanda Torres na noite de domingo é inédito! Ela foi a primeira brasileira a vencer na categoria de Melhor Atriz em Filme de Drama por sua atuação em Ainda Estou Aqui.

Este feito ganha uma importância particularmente interessante quando entendemos que:

  1. Estamos falando de aproximadamente 200 jornalistas internacionais que votam e participam do processo de escolha;
  2. Em média, o Globo de Ouro tem um alcance de 18 milhões de telespectadores nos EUA e é transmitido globalmente. Em 2025, a premiação bateu recorde de ibope, chegando a picos de 3,5 pontos de audiência;
  3. Apesar de serem outros votantes, o filme, a atriz e toda a equipe de Ainda Estou Aqui ganham um peso a mais em termos de visibilidade e prestígio para a premiação que vem a seguir, que é o Oscar.

Refletindo sobre a simbologia dessa vitória em termos práticos, estamos falando de uma vitória em uma premiação que é um símbolo do soft power da indústria cultural americana, que molda percepções globais. Quando uma atriz vence, especialmente se ela representa uma identidade ou cultura marginalizada, sua vitória ressignifica o espaço ocupado por essas vozes.

Basicamente, ver uma atriz brasileira em um filme falado em português ganhando um prêmio em um país que é símbolo do imperialismo e capitalismo contemporâneo, é como pegar um megafone e expor para o mundo que aquela história constrói uma nação, define valores e cria pontes entre culturas.

Não há de se estranhar, a própria Fernanda Torres definiu o simples fato de o filme ser um dos indicados como um “milagre”:

“É um milagre! A gente está com um filme cuja única barreira é a língua, e estamos aqui de igual para igual com outros filmes enormes.”

E aí vamos para o segundo aspecto importante dessa conquista… o aspecto político.

2) Político:

No dia 06/01/2025, Donald Trump terá sua vitória certificada no Congresso americano. No dia 20/01/2025, o republicano tomará posse como o 47º presidente dos EUA.

Trump foi eleito com um discurso muito forte de ódio e xenofobia. Essa retórica antiimigrante o ajudou a se eleger, defendendo um modelo fechado e excludente, onde aqueles que não se encaixam no perfil norte-americano tradicional são vistos como ameaças. Em meio a esse cenário, a vitória de Fernanda Torres transcende o reconhecimento individual, representando a força e a importância de uma cultura que, apesar das dificuldades políticas e sociais, segue se afirmando e conquistando espaços de destaque no cenário internacional.

Essa conquista é, sem dúvida, um reflexo do poder transformador da arte e da cultura, que têm o poder de unir pessoas e quebrar barreiras. Enquanto o discurso de Trump e de tantos outros líderes ao redor do mundo tenta enfraquecer o sentido de comunidade e fraternidade, a vitória de Fernanda nos lembra que a arte é uma ponte que conecta pessoas de diferentes origens e histórias, reforçando o valor da empatia e do respeito.

Durante entrevistas no Globo de Ouro de 2025, Walter Salles destacou que essa edição da premiação contava com mais de 20 obras estrangeiras, o que é um recorde no evento.

Este aspecto político é importante justamente porque a arte se posiciona de uma forma a nos rememorar os valores humanos essenciais, muitas vezes surgindo em contextos de opressão ou crise social. O Cinema Novo, por exemplo, surgiu no Brasil durante a ditadura militar. A Nouvelle Vague na França, representando a liberdade e a subjetividade humana. O Neorrealismo Italiano, após a Segunda Guerra Mundial, focou nas dificuldades do cotidiano das classes populares. O Expressionismo Alemão desempenhou um papel significativo na reflexão sobre a condição humana, especialmente em tempos de crise, e por aí vai…

Por isso, uma atriz estrangeira vencer um prêmio como este, cujo filme fala sobre a ditadura militar brasileira, é uma pequena revolução. E não à toa, temos o último aspecto da importância deste prêmio… o cultural.

3) Cultural

Ainda temos o Oscar pela frente. Ele tem um peso maior para a indústria cinematográfica porque é uma premiação cujos jurados são pessoas da própria indústria, como diretores, atores, etc. Além disso, a Academia trata do Oscar com um “glamour” diferente, seja com seu tapete vermelho, na chegada dos artistas, ou na própria audiência, que, nos tempos áureos, já chegou a bater quase 30 milhões de espectadores.

No entanto, independente do resultado do Oscar 2025, o feito de Fernanda Torres e da equipe de Ainda Estou Aqui já é algo marcante na nossa cultura. Isso porque, muitas vezes, o próprio brasileiro entende que sua arte faz parte de uma dinâmica de invisibilidade cultural, onde frequentemente o artista brasileiro é pouco valorizado dentro e fora do Brasil. O Globo de Ouro reconhecer a atriz, ao premiá-la por uma produção que toca questões de transcendência humana, é uma forma de visibilizar as narrativas brasileiras que ultrapassam a ideia de uma cultura subalterna.

Essa visibilidade alcançada pelo prêmio de Torres no Globo de Ouro também deve ser vista como um pequeno, mas significativo, gesto de autorresponsabilidade cultural. Não se trata apenas de reconhecer um talento individual, mas de afirmar um compromisso com a diversidade e a pluralidade de vozes que formam o tecido cultural de um país vasto como o Brasil.

É importante, nesse momento, festejarmos a vitória de Fernanda Torres, sobretudo em tempos de crise política, onde a arte é frequentemente questionada e deslegitimada. O prêmio da atriz se coloca como uma resistência.

Não é por acaso que, no Brasil e no mundo, a arte e a cultura sempre foram alvo de disputas. De um lado, a arte é vista como um veículo de transgressão e crítica social; de outro, como um reflexo da ordem estabelecida. E lembrar da trajetória de Fernanda Torres, com sua atuação em Ainda Estou Aqui, um projeto que também toca em questões existenciais e sociais, resgata a ideia de que a arte, como afirmação da subjetividade humana, também é um campo de confronto político.

Neste sentido, essa vitória vai além do reconhecimento pessoal e profissional: ela se torna um símbolo da resistência cultural brasileira no cenário internacional, em um momento no qual o país enfrenta desafios não apenas econômicos e políticos, mas também uma batalha constante pela valorização da arte e da diversidade cultural.

Fernanda Torres afirmou algumas vezes que: “Independente de levar alguma estatueta para casa, seja do Globo de Ouro ou do Oscar, só o fato de estar concorrendo, de ver o filme sendo reconhecido, já era motivo de orgulho.” – Estamos falando de um filme falado em português, sobre um período da história no qual nós não nos retratamos, não o rememoramos como deveríamos, e ainda enfrentamos polos da população que tentam fazer um revisionismo histórico. Esta vitória de Fernanda Torres é, de fato, uma conquista magistral, digna de lágrimas, sorrisos, gritos e orgulho.

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