Crítica: The Substance - Festival de Cannes 2024 - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: The Substance – Festival de Cannes 2024

The Substance – Ficha técnica:
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Nacionalidade e Lançamento: Reino Unido, Estados Unidos, França, 2024 (Festival de Cannes)
Sinopse: Uma celebridade em decadência decide usar uma droga ilegal que funciona como uma substância replicadora de células capaz de criar temporariamente uma versão melhor e mais jovem de si mesma.
Elenco: Margaret Qualley, Dennis Quaid, Demi Moore, Hugo Diego Garcia, Joseph Balderrama, Oscar Lesage, Gore Abrams, Matthew Géczy.

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Uma das formas mais cruéis de se excluir uma mulher da sociedade é pela sua idade. A maneira brutal com que Hollywood lida com a passagem do tempo de suas estrelas, expurgando-as do ofício ou de forma mais discreta, colocando-as “na geladeira” serem vencidas pelo esquecimento, é tão antiga quanto o advento do som no cinema, e Norma Desmond que o diga.

Quando assisti Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder pela primeira vez em 2021, escrevi um texto enorme para o Cinemafilia sobre meu fascínio com o filme, o qual começou antes de tudo pelo tema. Norma Desmond, uma estrela do cinema mudo, via sua vida cair em ruínas e ela própria cair no esquecimento, com a chegada do cinema falado e o seu envelhecimento para a indústria.

Na mesma época, estava lendo o livro Hitchcock/Truffaut e nunca me esqueci do momento em que o diretor britânico disse que para deixar as mulheres mais jovens no cinema, antes da existência de efeitos especiais, colocava-se um fino tecido sobre a lente da câmera o qual apagava, como um efeito “blur”, as rugas dos seus rostos e deixava-as, assim, mais “agradavelmente jovens” aos olhares da audiência.

Aquilo me chocou profundamente, foi a primeira vez que eu ouvi falar do uso dessa técnica e foi a primeira vez, de forma concreta, que o etarismo em Hollywood passou a ter um espaço reservado nas minhas reflexões críticas. A verdade é que sempre existirá uma nova Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, Meryl Streep, Nicole Kidman, Julia Roberts, Anne Hathaway, Sydney Sweeney.  No final, todas estão conscientes que é apenas uma questão de tempo até seu relógio expirar e então outra garota, mais jovem, assumir o seu lugar.

Não é apenas o cinema que funciona dessa forma, o showbiz é sobre isso: vender e objetificar mulheres que jamais envelhecem, que são eternamente jovens, felizes e saudáveis, o objeto de desejo de todos os homens e mulheres do mundo que quando não querem devorá-las com olhos, encontram conforto em invejar suas vidas e os seus corpos perfeitos.

O novo filme de Coralie Fargeat é sobre tudo isso. Um conto de horror corporal sobre o etarismo em Hollywood, com Demi Moore e Margaret Qualley formando esses dois contrapontos: a mulher que caiu em decadência e uma outra que à sua semelhança está em processo de ascensão. A questão-chave é que em The Substance, ambas necessitam da existência uma da outra para serem quem são e o equilíbrio dessa balança não demora para ser descompensado.

Entre referências a “Branca de Neve”, o clássico da Disney, “Carrie” do Brian De Palma, “A Mosca” e “Videodrome” de David Cronenberg, “Crepúsculo dos Deuses” de Billy Wilder, “Matrix” das irmãs Wachowski, “Seis Mulheres Para o Assassino” de Mario Bava e tantos outros filmes, “The Substance” consegue permanecer com uma identidade própria que caminha entre o aterrorizante e o cômico. A escolha por permanecer artificial, colorido e sintético é coerente com sua narrativa satírica, a qual projeta uma Hollywood tão onírica quanto em “Cidade dos Sonhos” de David Lynch.

No início, parece que o filme não vai engatar em algo próprio ou que se acontecer, manterá um tom cordial até o final. Nada de muito incisivo ou marcante. Ledo engano. Do segundo terço em diante a trama escala, escala, escala e explode, literalmente, em um final de jorrar sangue, vômito, suor e órgãos. Como alguém que ama body horror, a diretora insere elementos do gênero em tudo, especialmente na forma como trata as cores e o som durante o filme. Desde a primeira cena temos um ovo que tem uma substância injetada na gema eventualmente terminando no desenvolvimento de uma segunda gema em tela, a duplicação das células que caracteriza a experiência da “substância”.

Funciona assim: se você quiser ser uma versão melhor de si, deve injetar um líquido em si mesma que dará início a duplicação de cada célula do seu corpo em uma versão “melhorada” e então sua doppelganger será criada, assumindo em breve o lugar de privilégio no mundo, o qual não pertence mais a você. Parece simples, mas o problema é que o sucesso e a beleza são sedutores demais para se abrir mão e então, aos poucos, o corpo está fadado a transparecer a impiedosa passagem do tempo. Por bem ou por mal.

Para mim, um dos melhores aspectos desse filme é que diferente de muitas obras do gênero, este não se leva a sério. A extensão temporal que revela uma faceta cômica da cena final é uma prova de que a diretora tem um senso de humor consciente sobre toda a situação, enquanto ainda tece uma crítica válida e poderosa sobre o status quo dessa industria. A escolha por Demi Moore se torna ainda melhor nesse sentido, uma atriz que fora das telas representa essa musa de outrora, de Striptease, enquanto Qualley, a musa de hoje passou um dia antes no tapete vermelho por outro grande filme de Cannes.

Me intriga esses comentários que vão além da obra, embora não sejam determinantes para minha relação com o filme, adicionam uma camada a mais em mim enquanto espectadora. Todas as referências que o filme faz também são muito enriquecedoras. O corpo revela o horror da existência da protagonista e a aversão que tem a si mesma e a sua imagem.

Transforma-se então de Demi Moore a um ser quasímodo, desfigurado e autodestrutivo o qual mesmo diante de tanto horror ainda faz de tudo para ser “belo” – no piloto automático da opressão da ditadura da beleza. Um grande filme que tem tudo para não ser esquecido tão cedo, um verdadeiro show de horrores o qual passa pelo lado mais sujo e nojento que existe dentro dessa ideologia ultrapassada e assassina de mulheres. Eis o nascimento de um manifesto contemporâneo, artístico e feminista pelo fim do etarismo na indústria Hollywoodiana. Para mim, uma versão contemporânea e autentica de um “Crepúsculo dos Deuses” aplicada ao showbizz.

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