Crítica: Megalópolis – Festival de Cannes 2024
Megalópolis – Ficha técnica:
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2024 (Festival de Cannes)
Sinopse: Um arquiteto quer reconstruir a cidade de Nova York como uma utopia após um desastre devastador.
Elenco: Adam Driver, Nathalie Emmanuel, Shia LaBeouf, Giancarlo Esposito, Aubrey Plaza, Laurence Fishburne, Dustin Hoffman, Jon Voight, Chloe Fineman, Thalia Shire.
.
Não há história que já não tenha sido contada. Eis um (quase) consenso da crítica cinematográfica. O desafio do cinema, portanto, está em encontrar novas formas de contar as mesmas histórias e isso se faz, sempre, através de uma nova maneira de se pensar a linguagem.
Francis Ford Coppola enfrentou mundos e fundos para trazer seu projeto de quarenta anos para as telas. “Megalopolis” nasceu com o fardo de fazer jus a 120 milhões de dólares, sustentando o título de filme independente mais caro da história do cinema. Tinha como obrigação superar de certa forma (ou ao menos se igualar a) alguns dos maiores cânones da história do cinema, incluindo “Poderoso Chefão” (1972) e “A Conversação” (1974).
Depois de passar os últimos anos confeccionando “petit films“, aqui citando Godard, Francis resolveu perseguir seu sonho: lançaria “Megalopolis”, finalmente, mesmo que isso custasse mais uma vez parte da sua fortuna e uma série de polêmicas, incluindo uma acusação grave de assédio sexual nos bastidores, publicada dias antes do filme estrear pelo The Guardian. Bastidores turbulentos, por sinal, parecem ser comuns na história do diretor, afinal quem não sabe ao menos uma história sobre a caótica produção de “Apocalypse Now” (1979)?
Hoje, dia 16 de maio de 2024, Coppola enfim entrou no tapete vermelho da Grand Theatre Lumière e exibiu para o mundo seu projeto cinematográfico mais ambicioso, o qual eu apelidei de “uma sátira política de inventividade sem precedentes”, logo depois da sessão. Em “Megalópolis”, Coppola relembra o maneirismo de “Do Fundo do Coração” (1981) e a tragédia da América de “O Poderoso Chefão”, em uma trama que remonta o Império Romano em um futuro distópico, na intenção de dar o golpe final rumo à destruição do ideal do sonho americano ao fazer dos mais afortunados motivo de piada.
A obra é, essencialmente, uma releitura moderna dos conflitos shakespearianos e encontra na inovação da forma e da linguagem cinematográfica uma nova maneira de se fazer cinema. Estou ciente de que parece exagero, mas eu já estava convencida disso antes mesmo do momento mais inusitado que já vivi no cinema ser materializado diante dos meus olhos: uma pessoa saiu de trás das telas, invadiu o palco da Debussy com um microfone em mãos no meio da projeção e então, sem mais nem menos, interagiu diretamente com o personagem de Adam Driver. Simultaneamente, de costas para a plateia e de frente para o filme.
É claro que a partir disso a minha ideia de cinema interativo, sem bordas e quaisquer limitações, passa por uma mudança de paradigma inenarrável. Muitos questionamentos surgiram em minha cabeça: como algo assim será reproduzido em outras sessões de Megalopolis? O que acontece quando o filme passar para a mídia física? Principalmente, existem limites que não podem ser ultrapassados? É isso que me empolga e é isso que faz um filme se tornar inesquecível, também. As vaias desse momento na sessão de imprensa me fazem perceber que infelizmente “limite” é algo que muitos ainda querem impor sobre a arte cinematográfica, mas ao fim e ao cabo o que eu penso sobre tudo isso é que é simplesmente fascinante não ter limites. Afinal, é disso que a crítica e o cinema se constroem e se retroalimentam, por toda a história.
“Megalopolis” é consciente de sua breguice, sua megalomania e seu caos visual – e isso é muito, muito bom. Coppola já teve sua dose de filmes elegantes, épicos, musicais, filmes de guerra. Como um gigante da Nova Hollywood, seu legado já está marcado na história com todos esses filmes que vemos e revemos, todos os anos. Já conhecemos tudo isso, já estamos mais que familiarizados. Qual seria a serventia de um filme que critica o capitalismo moderno e a sociedade do consumo e das aparências se limitar a ser uma obra pautada em cinismo e seriedade, quando a sátira política, o cinema camp, a plasticidade visual e o absurdismo podem ser utilizados a favor do exagero? Em nome da imagem?
As imagens criadas por Coppola neste filme parecem uma nova forma de pensar o maneirismo a partir da fotografia digital e do CGI no cinema. As imagens com dupla, tripla, quádruplas exposições formam quadros fascinantes e inesquecíveis, os quais montam por si só a rede de intrigas que leva nome de grandes figuras da história romana, de Calígula a Clódio, de Crasso a César. O filme parece autobiográfico e o personagem de Adam Driver parece representar o fascínio de Coppola e do cinema, como um todo, em parar o tempo.
Ultimamente, podemos concordar que o cinema nada mais é do que uma forma de manipular e esculpir o tempo através da imagem. César, o protagonista, é esse arquiteto visionário que tem como objetivo criar a cidade de Megalopolis, uma utopia ultratecnológica que irá permitir que todas as pessoas do mundo (ou ao menos da Nova Roma) vivam de forma igualitária. O que é, também, um pouco do que é o cinema, não? Na sala de cinema todos somos iguais, vivemos as mesmas experiências no mesmo espaço e pelo mesmo período de tempo. Somos expostos a uma só tela, uma só trama e a partir disso, rimos e choramos juntos.
Para Coppola, a saída de uma sociedade que parece estar fadada ao fracasso e a mesquinhez só poderá ser curada a partir da utopia, e essa utopia é o cinema. É essa forma de congelar o tempo, de através disso amar e ser amado. É curioso, ao mesmo tempo que muito triste, que Megalopolis tenha saído um pouco depois da morte de Eleanor Coppola. Esse filme é uma carta de amor à sua esposa e ao cinema. Uma obra de um diretor que embora consagrado pelo tempo, não deixa de se empolgar com a arte cinematográfica o suficiente para tratá-la de forma disruptiva aos 85 anos de idade.
Parte do que me faz amar o cinema é poder viver momentos como esse e testemunhar as mudanças pelas quais a sociedade passa e, como reflexo, a arte também. Empolga que tenhamos pessoas já tão consolidadas em sua carreira dispostas a venderem tudo a fim de desenvolver uma verdadeira experiência sensorial através da explosão de cores, música, dança, literatura, política e cinema. Entrei e saí da sessão sem saber descrever esse filme e não sei se um dia conseguirei. Seus temas podem ser apontados à vontade, são nítidos, suas tramas poderão ser descritas anos a fio junto do seu intenso simbolismo, mas a experiência de ver tudo isso posto em tela, dividido, ampliado, focalizado e distorcido, também, é explosiva e inenarrável e vai facilmente do amor ao ódio.
Acredito que, no final das contas, Megalopolis é mesmo um filme divisivo e que dificilmente irá se pagar, mas vai entrar para a história como um dos retratos mais atemporais sobre a sociedade moderna e de outrora no cinema. Hoje eu agradeço pelo cinema que faz mais perguntas do que entrega respostas, o cinema que mais embarca nas possibilidades que o futuro reserva à linguagem cinematográfica e que menos se interessa pela velha zona de conforto. É curioso e revelador que sejam diretores como Coppola e Scorsese que pensem no cinema contemporâneo como o momento de transpor barreiras, quebrar paredes. A inovação não tem nada a ver com a idade e sim com a vontade de ser visionário. O cinema passa por um novo momento e fazer parte disso é um privilégio.