Como na vida, a morte chega sem avisos
“Era um dia como qualquer outro”, sempre dizem. No imaginário popular, referir-se à morte de um ente querido, ou mesmo de qualquer pessoa, é lidar com um acontecimento que não tem como antecipar, se preparar, ou prever. Indiscutivelmente, é o único acontecimento que não faz distinção de classe social, raça, cor, histórico familiar, religião. A humanidade, a factibilidade e a vulnerabilidade em torno da morte é o que faz dela tão especial e mitológica, fascinando e aterrorizando, na mesma medida, a humanidade através dos tempos.
Das literaturas Homéricas ao teatro Shakespeariano, das pinturas celestiais de Michelangelo aos suspenses Hitchcockianos, a morte é tema recorrente dentro da arte. Gostamos de pensar que estamos no controle de algo tão profundamente incontrolável, por isso tentamos recriar cenários onde a morte pode ser prevista e, consequentemente, preparada. Quando pensamos na retratação da morte no formato televisivo, quase sempre esses acontecimentos vêm diante da sensação de controle do espectador. Basta ver o episódio final de Breaking Bad, Ozymandias e o, praticamente unânime em impacto, Made in America de Família Soprano: embora os personagens principais sucumbam ao destino inevitável da morte, estamos a par desse acontecimento – e algumas vezes, até torcemos para isso.
Assistir a um personagem principal morrer, diante de nós, ou chegar a inferir esse acontecimento, dentro do nosso campo de visão, é o mesmo que ter uma sensação de controle do destino – a sensação que nos é sempre negada em vida. O cinema e a TV, por consequência, permitem de forma deliberada que esse falso controle nos seja cedido. Pelo menos, permitiam até ontem, no terceiro episódio da última temporada de Succession. Na história da televisão recente subverter essa intenção, que parecia ser primária para roteiristas, parecia duvidoso. Poderia um personagem principal morrer sem a nossa anuência? E, ao fazer isso, o que essa morte iria representar para a história? Para a História?
A série nos dá a resposta antes mesmo do episódio acabar. A morte de um personagem como Logan Roy acontecer, para nós, fora da tela e sem a nossa anuência, significa a virada de chave da série e, de certo modo, da história da televisão também, significa tudo. Os momentos de aflição que sentimos neste episódio, junto com os Roy, é o mesmo que nos rebaixar à condição de meros personagens, completamente manipulados, aflitos, sem noção alguma de como reagir – ou mesmo ao quê reagir. Como fez com os irmãos, Jesse Armstrong nos colocou à deriva, em um barco, longe da terra firme. Nos forçando a ter uma perspectiva completamente guiada apenas pelo que era necessário saber, até o final.
A instabilidade da situação, neste episódio, foi validado por inúmeros motivos, a começar pelas locações perfeitas: um barco e um avião, meios de transporte de enorme instabilidade, frequentemente isolados. Em dois diferentes núcleos, em algum lugar entre o ar e água, ressaltou-se não apenas a distância geográfica em que aquela morte acontecia, em tempo real, mas a distância emocional que parecia ser cada vez mais irreversível entre os personagens. Não tinha como ser diferente, a morte de Logan não poderia ter se dado na presença dos filhos, o véu que separava a sua figura era dotado de uma impenetrabilidade desumana, sendo necessário o intermédio de um aparelho como um simples telefone como um canal para expressar sentimentos.
Mesmo com uma equipe inteira de trabalho no avião, o personagem morre isolado do mundo e de nós, reforçando por parte da série que a sua partida tinha um caráter para além de um personagem principal: ele era um verdadeiro mito. Sua força gravitacional, a qual parecia pairar em todos os outros personagens ao longo de quatro temporadas, continua no episódio inteiro mesmo depois da sua inquestionável prova de morte. Essa, definitivamente, não é a apenas a morte de um anti herói como Walter White ou Tony Soprano, é outro tipo de destino, um daqueles que eu só me lembro de ter visto parecido após ouvir o primeiro “rosebud” dito por Kane, na obra de Orson Welles.
As similaridades de ambos personagens, inclusive, reaparece no episódio anterior da temporada e tem, ainda, tudo a ver com a premissa verossímil da série que irá ser um dos seus maiores méritos, neste episódio e como um todo. Logan Roy morreu como uma figura histórica bastante comum dos Estados Unidos desde a sua fundação: o self-made american man. O homem americano bem-sucedido que, na ânsia de construir seu próprio império, submete seus filhos à pressão da sucessão familiar. Uma monarquia atualizada para os tempos do capital, uma tragédia Shakespeariana anunciada e trabalhada de forma exaustiva nessa série.
Era preciso que o conservadorismo e tudo que ele representava, em tese, morresse, para que Succession desse espaço para todos os conflitos sucessórios que habitam o momento de crise midiática real desse século, que lucra com o jeito antigo de se fazer política – e se recusa a abrir os olhos para um novo momento, o que Kendall e outros filhos buscam representar. A série, que tem uma inspiração mais que clara em um recorte histórico e social desse tempo, aumentou ainda mais um grau na sua metalinguagem com a abordagem que escolheu: bastou apenas uma ligação para que o que seria como qualquer outro episódio – ou qualquer outro dia – não fosse mais igual.
Em poucos minutos, essa abordagem crua e gradual, em termos de tensão, nos rouba a atenção por completo e deixa o show por parte das atuações incomparáveis e plausíveis de todo o elenco. Enquanto Connor lamenta nunca ter deixado o pai orgulhoso, Kendall admite nunca conseguir perdoá-lo e Roman se recusa a aceitar a morte do pai, Shiv enfrenta a culpa excruciante de não conseguir falar enquanto era tempo. Para uma família completamente desestruturada, a morte vem em um momento onde o perdão, o diálogo e o contato físico já não eram mais uma opção.
As conversas sentimentais são rapidamente substituídas pelos planos das próximas horas, o luto dá espaço a monotemáticas e isentas declarações, previsões e metas. Seria possível esperar o mercado abrir para ver o corpo do próprio pai? Para uma série familiar cujo texto principal sempre foi ironicamente focado nas dinâmicas de mercado e na impessoalidade das relações que se sucedem, Succession fez a morte de uma figura patriarcal e importante parecer, além absolutamente revolucionária para a televisão, ao mesmo tempo incrivelmente ordinária em termos desumanidade do mundo atual.
A temporada começa com Logan Roy dizendo que pessoas são meras unidades econômicas, atuando em diferentes áreas da vida: do amor ao trabalho. Ninguém vale nada sozinho, todo mundo precisa ser pensado em conjunto como potencial de dividendos e lucros, uma abordagem desumana e cruel. No terceiro episódio, em uma ironia do destino, ele mesmo vira uma estatística de mercado, para todos que o tinham como exemplo, incluindo os próprios filhos. Podemos esperar o mercado abrir para nos despedir do nosso próprio pai? Indagação fria e crua, como na vida, a morte de Logan em Succession provoca uma virada de chave que ressalta, ainda mais, o caráter corporativista e cruel da série.
Connor’s Wedding foi o carimbo que faltava para a Succession deixar sua marca irreversível na televisão mundial, subvertendo as expectativas de um público que não esperava ver nem metade do que viu, nem sentir um terço do que sentiu, mas de alguma forma sabia que só poderia vir dela. Jesse Armstrong e todos os responsáveis, incluindo o elenco, acabaram reescrevendo, em termos de possibilidade, uma nova abordagem cinematográfica que brinca com controle e destino, com emoção e razão. É um marco mundial que, inquestionavelmente, já nasceu como História, e eu não tenho a menor dúvida disso.