O Cinema de Ana Carolina – 46ª Mostra de São Paulo
A 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo também está exibindo filmes clássicos internacionais e do nosso cinema brasileiro, entre eles, a Mostra exibiu a quatro filmes da cineasta Ana Carolina: “Mar de Rosas” (1978), “Das Tripas Coração” (1982), “Sonhos de Valsa” (1987), os três que compõe a sua “trilogia feminina”, e o seu mais inédito filme: “Paixões Recorrentes” de 2022. Ver os filmes em sequência no cinema reafirmam a grandiosidade de Ana Carolina no nosso cinema e os efeitos únicos que os seus filmes têm. Filmes que são a mais pura manifestação do caos coletivo e das possibilidades de insanidade que podemos encontrar nesse país. “Mar de Rosas” por exemplo conta a história de uma mulher chamada Felicidade (Norma Bengell) fugindo em companhia com a sua filha Betinha (Cristina Pereira). É muito difícil colocar em palavras as sensações que ele consegue construir por meio de imagens, câmera, atores, montagem tão agitada e de diálogos. É a vida se fundido a uma estrada. São as luzes numa estrada escura que abre para um mundo onde os extremos demonstram realidades das relações da nossa sociedade: mães e filhas, homens e mulheres, maridos e esposas, e por aí vai. O mundo se abre pro caos, pra desordem, pra revolta, pra revolução, para a destruição das instituições, das instruções e relações de poder, a normalização total da violência e do absurdo, pra aleatoriedade de tudo que é tão confiado pelo filme inclusive o humor, nada nunca para, sempre existe um gesto absurdo, uma graça, os personagens falam poesias com deboche, ditados populares, inglês, contam piadas, dizem absurdos, gritam, falam em cima do outro e todo tipo de absurdo acaba sendo possível nesse mundinho peculiar de Ana Carolina.
É um filme que foge de qualquer lógica naturalista e realista, mas consegue te situar nesse tipo de vibração, humor, diversão, tormenta e texto de um jeito tão natural que impressiona. É tudo o máximo do orgânico. Que é quase impossível não querer ficar horas assistindo aqueles absurdos e aqueles tipos incríveis criados por atores geniais (que coisa incrível é essa manifestação do caos que é a Betinha). Eles são forças da natureza e te atingem dessa forma. Por isso toda a sequência que reúne Norma, Cristina, Otávio Augusto, Ary Fontoura e Myrim Muniz é tão deliciosa pela entrega total que esses atores maravilhosos têm para essa manifestação do caos que eles são. Passando pela estrada, pela parada e pela fuga que é representada de um jeito totalmente livre em questão cênica, cinematográfica e dramatúrgica. Justamente por esse absurdo, por esse caos, chegamos em ápices de teses e leituras de mundo que vemos sempre.
Já “Das Tripas Coração” segue com Ana Carolina continuando plantando o que colheu em “Mar de Rosas”: essa representação do caos coletivos, dos gritos que se juntam e se misturaram, dos tipos únicos, da mistura entre a poesia e o deboche puro, por uma destruição contrastante de lugares comuns, por duplos sentidos, ditados populares, brincadeiras infantis, o que é visto e detectado como “profano”, a celebração do que é revolucionário e espaços onde todo impulso dos mais inusitados, seus diálogos ao mesmo tempo tão filosóficos e tão sem pudores nas suas piadas, destrutivos e caóticos dentro de uma sociedade são possíveis. É um filme sobre uma escola tradicionalista só para meninas que é invadida pelas mais variadas fantasias sexuais e pelo caos em geral. Aqui personagens vivem seus sonhos ao máximo e o sonho é materializado na realidade.
Essa escola é tomada pela explosão, pela liberdade, pelo sexo, pela diversidade do sexo, pela contestação, pela revolução, pela completa revolta e oposição em ser domado pelo sistema e pelo sexo. Nesse ambiente escolar Ana Carolina constrói uma encenação hipnotizante onde ao mesmo tempo temos esses atos explosivos e toda essa radicalidade do estilo narrativo de Ana (a dança das garotas, as cobras e o incêndio) são sentidos, também temos a tradição e rigor transmitidos pelo sentimento austero do embate de muitas sombras e algumas luzes fortes batendo num ambiente onde a câmera se distância como na entrada do personagem do Fagundes, enquanto dentro dessa tradição, acaba existindo uma constelação do caos. Da desordem. Desses temas que Ana tanto persegue num elenco em completa sintonia, onde todos brilham.
Já em “Sonho de Valsa” se concentra em se focar em Teresa (Xuxa Lopes), uma mulher burguesa que faz uma viagem por ela mesma. É um filme sobre uma mulher e seus amores. Os homens da sua vida. E assim como nos outros filmes de Ana a imaginação vira algo com vida própria, flutua e se funde com a realidade. A luz assim como em “Das Tripas Coração” é um grande foco, transmitindo uma eterna busca pelo amor. O senso de humor da Ana Carolina e a criatividade em expor isso com tanta radicalidade imagética mudando cenários e tons – temos uma cena por exemplo que parodia visualmente o icônico momento de “E… O Vento Levou” logo após a protagonista ser citada, sereis aparecendo e os personagens fazendo viagens pelos lugares mais inusitados – em sua narrativa com esse espírito tão alucinado, livre e cheio de deboche é único. E Xuxa Lopes particularmente incorpora o seu texto e o seu estilo maravilhosamente parecendo até uma voz própria da diretora.
Seu último filme, “Paixões Recorrentes”, lança questionamentos: o que é o Brasil? Qual é a ideologia do Brasil? A ordem do caos está mudada, mas continua ali. Esse encontro caótico entre pessoas que não se entendem, um sistema em crise, poderes em crise, essa relação de poder, que se chocam e que falam línguas diferentes (questões que já estão nos filmes anteriores). Esse é um longa mais “calmo” e muito mais focado numa conversa permeada pela verborragia dos personagens do que os outros citados da diretora. Acho que o filme não tem aquela intensidade gigante do cinema de Ana e a complexidade necessária para entrar nos questionamentos que levanta, e além disso algumas tramas se diluem no meio disso (como a do casal português), o que faz com que aquelas conversas em alguns momentos saiam da atração que temos ao assistir ela, porém a habilidade de câmera da Ana Carolina é tão forte e ela entende tão bem aquele cenário que é impossível não se prender naquelas conversas no geral pelo domínio que ela possui do território ao redor delas. O que mostra como a encenação de Ana pode estar muito bem a favor de explosões e insanidades, mas também de um rigor formal bastante profundo. Desejo muito que esse seja o primeiro de uma nova trilogia como ela realmente falou após a sessão que deseja fazer. O cinema brasileiro precisa sempre de vozes e figuras tão únicas como Ana Carolina.