Crítica: Titane - 45ª Mostra de São Paulo - Cinem(ação)
Crítica: Titane - 45ª Mostra de São Paulo
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Crítica: Titane – 45ª Mostra de São Paulo

Titane – Ficha técnica:
Direção: Julia Ducournau
Roteiro: Julia Ducournau, Jacques Akchoti, Simonetta Greggio, Jean-Christophe Bouzy.
Nacionalidade e Lançamento: França, 2021 (45ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Em Titane, um violento acidente de carro deixou longos e duradouros efeitos colaterais: uma criança carrega uma placa de titânio em seu crânio; uma modelo de showroom de carros começa a ter atração sexual por seus produtos.
Elenco: Vincent Lindon, Agathe Rousselle, Garance Marillier, Laïs Salameh, Bertrand Bonello, Dominique Frot.

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Titane, de Julia Ducournau

Titane é praticamente um filme-evento para a roda de frequentadores de festivais de cinema, algo que fica evidente pela rapidez com a qual se esgotaram os ingressos para suas sessões na 45ª Mostra de SP. Raw (2016), o chocante filme anterior da diretora Julia Ducournau, já havia feito um sucesso considerável, mas após a vitória de Titane em Cannes, conquistando a Palma de Ouro – apenas a segunda vez na história que uma mulher levou o prêmio principal – é como se Ducournau tivesse seu talento consolidado de forma definitiva. E a curiosidade crescente para assistir Titane vem, também, de como é descrito por aqueles que o assistiram: aterrador, cômico, sensual, transgressor. Chocante.

Titane é, de fato, tudo isso. Mas o fator do choque talvez seja aquele que mais perdure após a sessão. Goste ou não, o filme certamente não falha em causar um efeito imediato no espectador. Essa alcunha existe independente da qualidade: O Novo Extremismo Francês, movimento e grupo de filmes no qual Titane deve ser incluso, utiliza a visceralidade da violência sobre o corpo como ferramenta de um curto-circuito: é através do incômodo apelo gráfico que atingimos a catarse emocional do ponto que o filme pretende provocar.

Com Titane, Ducournau parece ter entendido que o poder desse método só vem se você o levar até a risca. Raw é uma obra eficaz nos choques que se enfraquece pelas relações com o simbolismo, ou melhor, entre os signos e a violência visceral que o filme trabalhava, tentando buscar aos 45 do segundo tempo um tipo de fechamento intra-filme que justificasse os eventos transcorridos até então. Titane se eleva ao tornar sua forma um reflexo da própria protagonista, a dançarina Alexia (Agathe Rousselle), que sofreu um acidente automobilístico na infância e teve uma peça de titânio colocada em seu crânio, o que lhe deu uma cicatriz que percorre a lateral de sua cabeça.

Falar sobre o enredo de Titane sem dar muitos spoilers (se você se importa com isso) é complicado, já que não existe uma definição muito clara de atos, estruturalmente falando. O filme se transmuta de acordo com sua protagonista. Em tempos nos quais a separação de valor de um filme de acordo com seu gênero cinematográfico é encarada cada vez mais como algo contraprodutivo, um filme como Titane se demonstra como uma produção que utiliza essa mudança de gênero cinematográfico como um reflexo da mudança de gênero sexual eventualmente vivida por sua protagonista. Num filme que começa como uma mistura do gigantesco Crash – Estranhos Prazeres, de David Cronenberg, com um filme do Tarantino, o que temos é a implosão do filme arthouse. É uma produção que começa com o corpo fetichizado (sejam eles o corpo do carro, da mulher) e se transmuta para uma exploração do corpo que é totalmente honesta e empática com seus personagens (a mudança de gênero de Alexia, a mudança de corpo de seu “pai” anabolizado numa atuação incrível, maravilhosa, de Vincent Lindon).

O fetiche pelo fetiche (cinematograficamente, corporalmente com seus personagens) dá, então, lugar ao que é, no fim, uma história de pai e filho, como essas que vemos em produções direcionadas ao Oscar – mas aqui infinitamente mais honesta. Ao drama familiar, a duas pessoas que procuram se encontrar e se entender. Nesse sentido, o início de Titane é essencial para o efeito-chicote de expectativas que o filme provoca (e é um filme muito provocador): presenciamos as estranhezas interessantes, mas essencialmente fetichistas, a violência que se diverte consigo mesma (a sequência da cadeira enquanto ouvimos uma música dançante), o sadismo cometido pela própria protagonista, apenas para sermos manipulados pela história de “pai e filho” que transcorre no resto da projeção. A frase do pai adotivo para Alexia dá a letra: “não importa quem você seja. Você é meu filho”. Essa é a mesma aceitação que sentimos no indefinível e provocador Titane. Não importa quem aquela garota é, ou foi. Durante grande parte da projeção somos investidos nessa narrativa familiar e acreditamos nela como se fosse a bíblia. E Ducournau se compromete com essa jornada com honestidade singela, aprendendo a partir dos erros e acertos do marrento Raw, ciente de que um pingo de ironia ou consciência cinéfila/fílmica de suas referências faria o mundo inteiro de seu filme desmoronar. Titane pega essa noção muito consciente do cinéma du corps, do New French Extremity e a vira de ponta cabeça: é o cinema do corpo não só intra-filme, mas do corpo do próprio Titane, que muda de acordo com sua protagonista. E, enquanto essa transformação ocorre, acreditamos totalmente nela, somos investidos totalmente no filme que Titane se torna. Quer mais cinema que isso?

  • Nota
5

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