Crítica: A Garota e a Aranha - 45ª Mostra de São Paulo - Cinem(ação)
A garota e a Aranha - crítica - 45ª Mostra de Cinema de São Paulo
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Crítica: A Garota e a Aranha – 45ª Mostra de São Paulo

A Garota e a Aranha – Ficha técnica:
Direção: Ramon Zürcher, Silvan Zürcher
Roteiro: Ramon Zürcher, Silvan Zürcher
Nacionalidade e Lançamento: Suíça, 2021 (45ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Lisa está se mudando. Mara é deixada para trás. À medida que as caixas de mudança são transportadas, as paredes são pintadas e os armários construídos, abismos começam a se abrir, anseios ocupam os cômodos e uma montanha-russa emocional se coloca em movimento nesta catástrofe tragicômica. Um conto poético sobre mudança e efemeridade.
Elenco: Henriette Confurius, Liliane Amuat, Ursina Lardi, Flurin Giger, André M. Hennicke, Ivan Georgiev.

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Para um filme onde existe uma boa parcela de desabafos em forma de monólogos nos quais os personagens confessam histórias íntimas e reveladores sobre seus sentimentos, o suíço A Garota e a Aranha (Das Mädchen und die Spinne) surpreende por ser, na verdade, muito mais sobre o não-dito; sobre pulsões, desejos e angústias confessadas indiretamente pelos olhares. Vencedor do Prêmio da Crítica e de melhor direção na seção Encontros do Festival de Berlim, o mais novo filme escrito e dirigido por Ramone e Silvan Zürcher, que esteve presente na 45ª Mostra de SP e nos filmes da repescagem na Mostra, recebe o prêmio de melhor direção em Berlim com razão: das atuações num desconcertante equilíbrio tonal, aos planos simbólicos e condizentes com a proposta, o caos das vidas, pessoas e angústias que habitam este universo é contraditoriamente homogêneo. Reconheçamos que a hipérbole parece o mote – para o bom e o ruim – com “filmes de festival”, mas, com o perdão de mais um clichê, A Garota e a Aranha é uma destas produções que, goste ou não, permanece na cabeça do espectador dias depois de tê-la assistido.

Somos jogados no cenário de mudança de Lisa (Liliane Amuat). Caixas por todos os lados; cômodos sendo percoridos; pessoas da vida da garota entrando e saindo de cena. A protagonista é Mara (Henriette Confurius). A relação profunda entre as duas garotas é insinuada pelos olhares trocados no silêncio, e sugerem sentimentos não resolvidos. Essa relação das confissões verbais e as confissões não verbais são uma constante em A Garota e a Aranha, que na valsa inicial que abre o filme e as excentricidade das confissões vocalizadas verbalmente, de forma poética e em quase-prosas, pode sugerir justamente um filme onde a estranheza existe pelo prazer de si mesma. O excêntrico pelo excêntrico. No entanto, é vista aqui uma sensibilidade e riqueza temática que se consuma em pequenos clímaxes ao decorrer do filme, clímaxes esses que vêm justamente dessas confissões – verbais ou não, ao passo em que não se sente que é apenas Lisa quem está partindo. Amores, ressentimentos, paixões e intrigas nos são revelados silenciosamente. Corações são partidos.

Tudo no filme parece conectado, e as menções ao fato de as relações acompanhadas aqui parecerem um sonho da cabeça de Mara se justificam de forma muito eficaz, sustentadas pela já mencionada homogenia das atuações e das peças entrelaçadas na teia deste universo. Isso é sustentado pelos acordes da música Voyage Voyage, da banda Desireless. As notas de piano da música são repetidas no filme a esmo, às vezes de forma diegética, mas constantemente como trilha sonora que sobrepõe as cenas, ditando o humor e sentimentos pela forma que é utilizada (em determinado momento, os acordes de piano da canção se embaralham, tornam-se confusos, como algum personagem em determinada cena). Assim, a narrativa eventualmente recebe uma profunda carga onírica, onde esses olhares entre as pessoas que passeiam a narrativa e a vida da protagonista são externados num forma elevada na atuação, quase antinaturalista. Quase como num sonho, ao ponto em que as confissões dos sentimentos sobre cada relação também se homogenizam e se confundem, mas também se tornam universais, como se a partida de Lisa fizesse o universo dos sonhos em que esses personagens vivem desmoronar, como se todos fossem ligados por essa teia de sentimentos não ditos e muito familiares entre si.

Tornou-se cada vez mais comum a utilização do termo “Lynchiano” para definir alguma obra que possua o mínimo de tom da estranheza onírica com obras do cineasta David Lynch, mas talvez A Garota e a Aranha receba essa alcunha com gosto: até mesmo a garçonete da padaria de frente do apartamento onde a mudança ocorre recebe atenção nessa narrativa de sensibilidade emocional, como se cada figurante – e até mesmo os peões de obra com suas britadeiras do lado de fora – fossem essenciais para o sonho/pesadelo extremamente sensorial sendo contado aqui. Nestes momentos, a britadeira deixa de ser um simbolismo para as relações truculentas que se empilham no filme, mas sim um instrumento do próprio sonho com intenção escancarada.

Nesse sonho, o tom potencialmente críptico visto aqui parece se justificar, já que todos estão envoltos dessa áurea, e são instrumentos dos mesmos sentimentos de partida e confissões, chegando a cantarolar os acordes de Voyage Voyage, chegando a trocar de personalidade ou assimilarem estes sentimentos uns dos outros. Essa estranheza se normaliza para eles, e, portanto, também, para nós. Assim, cada gesto e olhar demorado, ganha peso e gravidade. A consciência de sua protagonista sobre esse sonho – explicitada nos momentos finais – apenas torna as confissões vistas aqui como intimidades sendo transpostas através de simbolismos e sonhos. Uma constante no filme são os personagens confessando estes sonhos, numa sensibilidade que transforma A Garota e a Aranha num incômodo olhar na psique destas pessoas. Quando Voyage Voyage entra completa em sua versão original nos créditos, sentimos a catarse dessas pulsões que foram trabalhadas: essa música meio esquecida – como num sonho e pesadelo – que é relembrada quando tanto a protagonista quanto nós, espectadores, acordamos desse feitiço. Acompanhamos um sonho um tanto críptico se desenrolar, com seus signos e confissões não verbalizadas. Pessoas adquirem a identidade de outras, sentimentos e inseguranças são externados, e, ao acordarmos, tentamos juntar os cacos largados pelo caminho.

  • Nota
5

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