O live-action de “A Pequena Sereia” será interpretado por uma atriz negra. E dai?
Recentemente a Disney tem investido fortemente em refilmagens de muitos des seus clássicos em versões live-action ou animações 3D. Algumas dessas versões seguiram fielmente (quase que frame-by-frame) a obra original como foi o caso de “A Bela e a Fera” e “Cinderela”. Outros fizeram adaptações bem livres como “Malévola” e “Dumbo”, e são nessas adaptações com mais liberdade criativa que a Disney tem acertado por trazer uma nova leitura às histórias contadas e uma necessária atualização temática. Em “Dumbo” por exemplo, inseriram personagens reais (justificando o live-action) e abordaram algumas interessantes camadas ecológicas ao filme.
A Disney ainda promete refilmar outras obras como “Mulan”, “101 Dálmatas”, “Pinóquio” e o objeto de discussão deste texto, “A Pequena Sereia”. Apesar de ainda não ter sinopse, o que nos impede se saber se será uma leitura fiel ou adaptada da obra original, sabe-se que teremos uma grande alteração no visual da protagonista. Ariel será interpretada por Halle Bailey, uma jovem atriz famosa por seu talento vocal na dupla de R&B Chloe X Halle.
A notícia é só essa mesma, obrigado pela atenção.
Ah tá, esqueci de falar de um detalhe. A atriz escolhida para o papel de Ariel é negra, enquanto a princesa na versão original é ruiva, e isso gerou uma série de comentários revoltados no lugar mais psicologicamente insalubre do mundo – as redes sociais. Mas também teve muita gente comemorando o fato de uma princesa com o alcance tão grande quanto é a Ariel ser interpretada por uma jovem e talentosa atriz negra. Mas afinal, isso é um fato relevante? Por que isso deveria importar?
É muito comum nestes casos de trocas de etnia de um ou uma personagem que haja reclamações quanto à alteração da obra original. Lembro-me da revolta que foi quando a personagem Hermione, de Harry Potter, teve uma atriz negra a interpretando em uma peça musical. Quero abordar mais sobre esse caso, mas por hora, tentemos entender o que algumas pessoas argumentam sobre essas alterações.
Os comentários parecem seguir uma linha de pensamento muito bem definida – “e se fosse o contrário?”. O problema é que ele não se sustenta pelo histórico de personagens e até pessoas reais que foram embranquecidas no cinema, na literatura e até em livros de história. Por exemplo, um caso que ganhou uma recente repercussão foi o do Machado Assis que sempre foi retratado como branco em livros e artigos quando o mesmo tinha pele escura. Recentemente uma ação chamada “Machado de Assis Real” foi criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares e pede para que uma nova imagem seja inserida em cima da antiga nos livros ‘para que todas as gerações reconheçam a pessoa genial e negra que ele foi’.
Outro caso bastante controverso, agora do cinema, foi a representação de Cleópatra vivida por Elisabeth Taylor. Há muita controvérsia acerca da real origem da mais famosa rainha da nossa história. Eurocentristas e Afrocentristas têm marcado suas posições no cenário científico e nos meios de comunicação debando esse tema, porém, o que realmente importa é a questão da representação negra na cultura ocidental.
Pegue o mais polêmico dos casos – Jesus Cristo. Nascido em Belém e filho de judeus, Jesus trazia consigo traços da região onde nasceu e viveu. Segundo cientistas e historiadores, Jesus teria olhos escuros, cabelos cacheados, barba espessa e pele bronzeada – traços considerados típicos de judeus do Oriente Médio na região da Galileia, norte de Israel. Nesse caso é importante pontuar que a definição de pele negra pode variar de um lugar para o outro. Por exemplo, em países onde há poucos negros retintos, uma pessoa com a pele uma pouco mais escura já é tida como negra. Contudo essa representação caucasiana de Jesus não é uma mera diferença na definição do que é ou não uma pelo negra. Essa representação parte do mesmo principio da representação de Hermione nos filmes de Harry Potter. Segundo a própria autora, J.K Howling, nos livros há poucas características físicas da personagem citando somente seus olhos castanhos, cabelos crespos e sua inteligência.
Agora vamos exercitar.
Jonh é um bem sucedido médico de 52 anos de idade. Morador do Leblon, Jonh faz exercícios diários à beira da praia para manter seu físico em dia e esbanjar seus atributos físicos.
Quando você lê um livro e não há menção alguma ao tom de pele do ou da personagem, como a descrição do médico acima, você costuma imaginá-lo como negro? Caso sua resposta seja negativa, pergunte-se: por quê?
Em entrevista dada ao podcast da casa, o ator Ícaro Silva revela que normalmente só recebe trabalho se a descrição do personagem mencionar a cor de sua pele. Ou seja, é sub-entendido que caso não haja descrição de que determinada personagem seja negra, automaticamente ela será branca. Isso se deve à falta de representatividade negra em diversas mídias como filmes, livros e séries. Quando pensa-se em uma sereia (ser inexistente fruto da imaginação do autor), sempre associamos com uma pessoa branca. Mas por que precisa ser assim?
A releitura de uma obra pede uma atualização conforme a época em que ela é revista. Atualizar a personagem escalando uma atriz negra não representa um substituição de etnia ou mesmo uma retalhação à falta de representatividade que ainda existe, e sim uma atualização histórica, um retrato de uma época em que os padrões de protagonistas em histórias da Disney está mudando. Todo filme é o retrato de seu tempo e “A Pequena Sereia” que ainda nem foi filmado já apresenta um novo e bem-vindo tempo.
E sim, isso é muito importante?