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Crítica: Ângela Diniz: Assassinada e Condenada

Ângela Diniz: Assassinada e Condenada
Criação: Pedro Perazzo, Elena Soares, Thais Tavares, Andrucha Waddington (dir.)
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2025
Elenco: Maria Volpe, Marjorie Estiano, Emilio Dantas, Antônio Fagundes, Renata Gaspar, Thiago Lacerda, Thelmo Fernandes, Camila Márdila, Tóia Ferraz.
Sinopse: Baseada no podcast “Praia dos Ossos”, a série narra a vida de Ângela Diniz e seu assassinato nos anos 70 por seu ex-marido Doca Street, que foi absolvido por “defesa da honra”.

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Quase 50 anos depois, o mesmo fato trágico que ceifou a vida de Ângela Diniz continua se repetindo na vida cotidiana brasileira. Recentemente, uma série de feminicídios ganharam as páginas dos noticiários. Tainara foi arrastada por quase um quilômetro pela marginal Tietê, e no Rio de Janeiro, dentro de uma instituição de ensino, um funcionário assassinou Allane de Souza, diretora da instituição, e a psicóloga, Layse Costa. Em todos os casos, foram homens que não aceitavam a autonomia dessas mulheres enquanto sujeitos livres, pela existência e posição social que elas ocupavam.

Baseado no excepcional podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, a minissérie da HBO, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, que teve último episódio exibido no dia 11, acompanha a vida pós desquite – nome dado à época para representar o divórcio – da socialite mineira até seu assassinato, em 1976, pelo vagabundo profissional Doca Street. Ela foi morta com quatro tiros e a defesa alegou legítima defesa da honra, ou seja, Ângela passou de vítima a culpada pelo crime. Esse tipo penal foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal apenas em 2023. 

Dirigida por Andrucha Waddington e escrita por Pedro Perazzo, Elena Soárez e Thais Tavares, pareceu uma boa escolha reforçar Ângela, numa liberdade interpretativa magnética de Marjorie Estiano, assim como os relatos contavam: uma mulher alegre, despojada, amiga, e corajosa. Acrescente a isso, a forma honesta e relativamente bem escrita, de como ela foi massacrada pela sociedade por ser como era, e o contraste social em relação a maternidade. Sabe-se que após o desquite do marido, um sujeito mais velho, a vida dela se transformou num inferno. 

Contribuindo para a desestabilização, o evidente papel da mãe de Ângela, Maria Diniz, interpretada pela sempre ótima Yara de Novaes, que reforçava estereótipos de comportamento machista: a recatada, do lar e submissa às vontades dos homens. A criação conservadora, tipicamente brasileira e com ares piorados da capital mineira, colocou a protagonista em rota de colisão com a cultura de sua época, logo com sua mãe, o ex-marido e posteriormente com Doca, numa performance friamente calculada de Emílio Dantas. Um detalhe apagado e que é explorado com naturalidade e carinho, é a bissexualidade de Ângela, fato que reforçava sua liberdade em existir, mas que depunha contra ela em vários momentos (pouca coisa mudou).

Parte do roteiro é estruturado em cima da tentativa de Ângela conseguir a guarda da filha. A maternidade se torna fundamental em suas motivações, contudo, acaba sendo uma faca de dois gumes. Para ter a filha por perto, ela teria que estar casada novamente, então, fez a proposta para o atual namorado, o colunista social da brega elite carioca, Ibrahim Sued – com Thiago Lacerda atuando fora do tom – que nega, fazendo-a procurar Doca. Dessa forma, a maternidade aparece como salvação e traço humanizador da personagem. E embora não pareça ter sido a intenção, para justificar os atos de Ângela, o roteiro se ocupa deste tópico de forma ambígua, pouco resolvida dramaticamente.

Diferente do tenebroso longa-metragem Ângela (2023), de Hugo Prata, em que a única coisa relevante era a atuação de Isis Valverde como protagonista, a minissérie tem capacidade argumentativa, pelo tempo maior, é claro, e se ocupa em expandir alguns detalhes e condensar outros. Na vida real e no filme, Ângela tinha 3 filhos, e no projeto de Andrucha, apenas uma filha. Outro ponto relevante é o julgamento de Doca, que toma um episódio inteiro, coisa que o longa só mencionava nos letreiros finais. Comum aos dois projetos, a maternidade não foge do lugar comum e parece desconjuntada.

O caso de Ângela foi a júri popular em Búzios, em função do assassinato ter ocorrido na Praia dos Ossos, onde ela e Doca moravam. Ares provincianos tomam conta dos presentes, embora tenha sido um crime de repercussão nacional. Em meio à Ditadura Militar, o movimento feminista já fazia protestos a respeito, ao mesmo tempo que Doca era querido por muitas pessoas, homens em sua maioria (pouca coisa mudou desde então), e também por mulheres que manifestavam apoio ao criminoso. Indiretamente o roteiro explicita as divisões sociais brasileiras, mas aponta a violência como marco fundador desta sociedade, que se alterna entre o silêncio e o ruído a depender da classe social.

Para defesa de Doca, o advogado e ex-ministro do STF, Evandro Lins e Silva, aqui interpretado por Antônio Fagundes numa performance lugar-comum, usa baixos argumentos para remover Ângela do lugar de vítima e colocá-la como culpada. Inicialmente, a defesa sustenta a ideia de crime passional, e como o argumento é desmontado pela acusação, parte-se para a defesa da honra, apelando para os casos amorosos bem antes de Doca. O episódio consegue sustentar a tensão sem parecer aborrecido e deixa o sensacionalismo para os próprios advogados, que fizeram uma espetacularização carniceira da vida de uma mulher assassinada pelo companheiro. Doca acabou pegando liberdade condicional no primeiro julgamento e anos depois, com a reabertura do caso, ficou poucos anos preso.

Para administrar o conjunto de fatos e dramaticidade, a direção de Andrucha Waddington faz o que consegue. Assim como em Vitória (2025) ou na série Sob Pressão (2017-22), que repete a parceria com Marjorie Estiano, o diretor não busca e nem se esforça em planejar ousadias cinematográficas. Seu trabalho é estritamente funcional e discreto, e tais características funcionam para o bem e para o mal. No bem, constrói-se espaços seguros para capturar as boas atuações, especialmente de Marjorie, que neste caso ama a câmera e vice-versa; e no mal, fica a sensação de repetição, marasmo e esgotamento, e Waddington não sabe como se livrar disso. 

A escrita majoritária de Elena Soárez também sofre de instabilidades. Ao mesmo tempo que retrata uma protagonista livre, companheira e responsável na maternidade, falha em compor algo dramaticamente menos enfadonho que não se resuma a guarda da filha ou a desobediência dos padrões sociais. Ângela era mais do que isso, e como sabemos o fim desta história – que às vezes parece correr para chegar lá –, espaços fora desses dilemas seriam bem-vindos. A criação da personagem Gilda (Renata Gaspar), uma das amigas progressistas, acaba ficando sem função, sendo que explorar as contradições da criação, por exemplo, seria um ganho de desenvolvimento.

Em certo episódio, Ângela menciona que foi educada para sorrir, acenar e aceitar, ser uma peça de manequim a favor dos homens, porém, isso jamais é posto em crise, confrontado. Gilda parecia ser a ponta de lança dessa discussão, que indiretamente é feito, mas numa escolha pobre dos roteiristas, quando Ângela recebe um exemplar do O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir. De todo modo, acerta em dar a ela o espírito pomposo e confrontador da ordem cultural, sem ter que se justificar para os demais, somado às boas relações de amizade, que a admiravam por ser quem era e pela lealdade, fato construído na atuação de Camila Márdila como a amiga Lulu.

Ângela Diniz: Assassinada e Condenada é uma obra que depende profundamente da atuação de Marjorie Estiano, mas uma boa representação do trágico fim de uma mulher que só queria viver a sua vida sem ter dono. A única vez que teve dono, como ela diz, foi sua mãe, e era uma mulher. Sua incessante busca pela liberdade, sempre esbarrava nos limites da cultura: estar casada, ser boa mãe – seja lá o que isso quer dizer –, boa dona de casa, contida, reprimida, etc. Ângela virou um símbolo importante para a luta dos direitos das mulheres e para o feminismo brasileiro, e diferente do que alegam pseudofilósofos midiáticos da classe média, talvez não tenha tanta coisa de errado no movimento feminista, mas é bem provável e possível que tenha algo de muito errado com os homens e o que se entende e se ensina sobre masculinidade.

Nota: 3 /5

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