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Crítica: Morra, Amor

Morra, Amor (Die My Love)
Direção: Lynne Ramsay
Roteiro: Alice Birch, Enda Walsh, Lynne Ramsay
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2025
Elenco: Jennifer Lawrence, Sissy Spacek, LaKeith Stanfield, Robert Pattinson, Nick Nolte, Kennedy Calderwood, Victoria Calderwood, Gabrielle Rose.
Sinopse: Num recanto esquecido do campo, uma mulher luta contra seus demônios: aceita a exclusão, mas anseia por pertencer; deseja a liberdade, mas se sente presa; almeja a vida familiar, mas deseja incendiar a casa inteira. Apesar da surpreendente tolerância da família para com seu comportamento cada vez mais errático, ela se sente cada vez mais sufocada e reprimida. Maternidade, feminilidade, a banalidade do amor, os terrores do desejo, a brutalidade de outra pessoa carregar seu coração para sempre.

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A socialização da mulher perpassa, inevitavelmente, pela ideia de maternidade. Um conceito imaculado, divino, associado ao corpo da mulher pelo chamado “milagre” da vida. Ainda crianças, mulheres são ensinadas a ver beleza nesse processo, a ver beleza no cuidado do outro antes de si, a jamais reclamar diante das intempéries da vida e, acima de tudo, permanecer obedientes e fiéis ao matrimônio — outro conceito igualmente sagrado.

Em “Morra, Amor”, Lynne Ramsay escolhe uma abordagem íntima e sensorial para retratar uma mulher que, diante dessa socialização inevitável, rejeita o papel que lhe foi imposto por meio do poder da desobediência. No longa, Grace e Jackson são um jovem casal tipicamente americano que acaba de realizar o sonho: o casamento, o primeiro lar e o primeiro filho. Tudo está como deveria ser, exceto pelo fato de que nada será como antes, uma vez que ambos não se reconhecem mais dentro da dinâmica desse relacionamento. Ambos perderam a si mesmos em algum lugar do processo, mas só uma pessoa do casal tem o luxo de perder-se e depois voltar, e — spoiler! — não é a mãe.

O nascimento do primeiro filho cria uma fissura profunda em Grace; é nítido que ela não enxerga mais a si mesma como um sujeito autônomo, fora do papel social de mãe e esposa. Tal distorção do próprio senso de identidade é apresentada por meio de técnicas que aproximam o espectador da sua psique, incluindo uma narrativa não linear, close-ups extremos, lentes Panavision com distorção de foco e várias imagens que provocam o espectador sensorialmente, por meio de suas texturas, do som ou mesmo de tão inacreditáveis (como a cena em que a floresta pega fogo). Não temos certeza da realidade, nem da ordem dos eventos; a montagem do filme é propositalmente construída para que o espectador se perca e apenas absorva o sofrimento psíquico de uma mãe que, muito provavelmente, tem sofrido de um quadro grave de depressão pós-parto.

A abordagem mais onírica é muito diferente da crueza realista de filmes como Uma Mulher Sob Influência de John Cassavetes, Wanda de Barbara Loden e Milk de Andrea Arnold, por exemplo. A temática, a atuação de Jennifer Lawrence e a liberdade de retratar personagens femininas sem tecer qualquer tipo de julgamento guardam semelhanças com todos esses filmes, mas é justo nessa liberdade narrativa e de imagens excessivamente trabalhadas que o filme de Ramsay se distancia destes também. O que poderia ser muito interessante acaba se tornando distrativo, especialmente quando tentamos nos conectar com Grace em um nível mais profundo.

O desenvolvimento da obra atravessa uma série de momentos, alguns arrasadores e outros perturbadores, mas dificilmente dá respiro para que possamos processá-los ou até para que tenham qualquer impacto. O contexto que entrelaça todos os fragmentos é o mesmo, sempre, e parece que “Morra, Amor” se contenta em ser um looping eterno das impulsividades da sua protagonista. Embora Lawrence convença nessa faceta maníaca e até cômica (se você considerar o extremo desconforto como algo capaz de trazer alguma risada), é difícil não sair da experiência estafado. E eu consigo compreender (e até gostar) quando Ramsay retrata o belo e o repulsivo, o humano e o animalesco e outras séries de justaposições que vão complexificando parte dessa jornada, mas o que fica para mim é que a diretora passa tanto tempo nas possibilidades visuais e estéticas oferecidas por essa história que, no final, não chega a nada além de um lugar comum.

Ao final, “Morra, Amor” se revela uma obra que possui potência temática, rigor técnico e atuações fenomenais, entregues de corpo e alma, mas a jornada de Grace merecia mais espaço para respirar, menos ornamento e mais carne. O filme é ambicioso e isso nunca é um defeito por si só, mas sua ambição o empurra para um lugar onde a forma engole o conteúdo, deixando a maternidade como condição social mais sugerida do que verdadeiramente enfrentada.

Nota: 2,5 /5

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