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Streaming valoriza documentários, mas impõe fórmula para funcionar

Streamings e documentários foram um dos melhores casamentos recentes e são vários os motivos para tal feito. A depender do estilo ou tema da história é mais fácil fazer a pesquisa, gravar entrevistas e, acima de tudo, mais barato de produzir. Geralmente relegados a festivais específicos, como o É Tudo Verdade, um dos mais tradicionais festivais brasileiros de documentário, a rodagem no cinema, quando acontece, se restringe às salas independentes das grandes capitais do país. 

O streaming chegou com a possibilidade, aparentemente inclusiva, de trazer tipos e estilos diversos. Contudo, neste último ano, em alguns deles é possível perceber um jeito bem específico de como as histórias estão sendo contadas. Recentemente assisti alguns documentários de plataformas diferentes e parece haver, ainda que de forma oculta, uma fórmula específica para fazê-los funcionar ao grande público. Isso era apenas uma impressão, que foi um pouco melhor embasada a partir de uma coluna do jornalista Maurício Stycer na Folha de S. Paulo. 

Na coluna ‘Artes e manhas de bons documentários’, do último dia 29, o crítico de TV menciona que na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Encontro de Ideias Audiovisuais, houve um debate sobre os caminhos contemporâneos dos documentários brasileiros e que um dos problemas mencionados, foi aceitar a imposição de fórmulas pré-determinadas pelas grandes plataformas de streaming. Ele escreve: 

“O cineasta Renato Terra [que estava exibindo seu documentário ‘O Brasil que Não Houve – As Aventuras do Barão de Itararé no Reino de Getúlio Vargas’ (2025)] observou que ‘existe um método para documentário no streaming’. É uma fórmula que ‘precisa de um prólogo acelerado, imagens para prender o espectador, uma virada a cada dez minutos’ e que ‘as técnicas para o streaming estão se desenvolvendo a ponto de criar uma linguagem que você não consegue mais abandonar’”.

Depois de ler a coluna, algo que já tinha observado foi se consolidando como pensamento melhor elaborado, mas sem uma conclusão mais objetiva. No momento, o maior destaque do ano parece ser a Vizinha Perfeita (2025), da Netflix, que até certo ponto é original. Dirigido por Geeta Gandbhir, a produção é feita quase que exclusivamente de registros das câmeras corporais de policiais de uma cidade da Flórida, que atendem a várias ocorrências do que aparentemente parecia ser uma briga de vizinhos, mas que termina em tragédia: uma mulher branca, causadora das chamadas aos policiais seguidas vezes, atira e mata uma mulher negra, mãe de quatro filhos pequenos. 

O documentário é chocante pelo crime torpe, porém, com a estrutura linear, sem surpresas, e a primeira imagem, a câmera do carro de polícia atendendo ao chamado de disparo por arma de fogo com vítima, encerra antes de começar a escalada. Ou seja, logo de início, apela-se ao choque e ao fim da “disputa” entre vizinhos. Esse gesto serve para prender o espectador, mas tira toda a tensão que será construída ao longo dos minutos de duração. A diretora só vai intervir para fazer o encerramento necessário, como a luta por justiça pelos familiares, a prisão da assassina e o racismo escancarado. A tensão crescente captada pelas câmeras policiais, embora eficiente, é diminuída por já sabermos o fim trágico. Voluntariamente ou não, o filme nos anestesia. 

Com o mesmo problema está o tributo ao diretor Martin Scorsese, na docusérie O Lendário Martin Scorsese (2025) da Apple TV+. Dirigido por Rebecca Miller, ela não esconde ser uma homenagem e monta sua série de entrevistas, hiper-convencional, mesclando imagens de arquivos, depoimentos e, vez ou outra, traz, quase como um sustinho para alertar o espectador, uma história um pouquinho cabeluda. A proximidade com a máfia italiana na infância, o uso de drogas já na vida adulta com a crise de criatividade ou os fracassos amorosos e cinematográficos. Com isso, não há tempo para se envolver e emocionar na profundidade da criação do personagem e somos suspensos a todo tempo da intimidade. De todo modo, esses recursos desnecessários, pois a vida do diretor já era interessante o suficiente, deixa mais fácil de assistir a tantos depoimentos dos muitos gênios e amigos do cinema.

Com temática diferente, o documentário da Globoplay, Collor: O Caçador de Marajás (2025), tem melhores ideias, inclusive com o uso da música sendo primoroso, e com um personagem mais complexo. O diretor Charly Braun, reúne em sete episódios a ascensão e queda do primeiro presidente eleito pelo voto direto depois de 21 anos de ditadura militar. A história política do Collor todos sabem, ou pelo menos tem alguma ideia, mas o que derrubou Collor de verdade, e esta talvez seja uma das ironias mais divertidas da vida política brasileira, foi a relação incestuosa e talvez invejosa com o irmão e obviamente, com a mãe. Caim e Abel eram peixes pequenos perto de Fernando Collor e Pedro Collor. 

A trama novelesca incapaz de ser criada por um roteirista hollywoodiano ou argentino, também sofre do mesmo problema dos docs já mencionados. Por vários momentos, a série avança no tempo para trazer um assunto bombástico — que eram inúmeros —, como incentivo para movimentar a narrativa, porém, mais adiante, veríamos novamente aquelas mesmas cenas, perdendo a chance de explorar outros momentos. No fim, é uma história tão surreal que só a realidade daria conta de explicar. São tantos assuntos, que até hoje ninguém se atreveu a narrar com alguma certeza todos os fatos. Collor: O Caçador de Marajás daria uma crítica em separado.

Me chamou a atenção, meses atrás, o lançamento quase simultâneo de duas obras da mesma personalidade, em duas plataformas distintas e resolvi me aventurar ao assistir um episódio ou os primeiros minutos. No Globoplay, Diddy: Como Nasce um Bad Boy (2025) e na HBO Max, A Queda de P. Diddy (2025), conta a história do magnata da música, desde a construção do império até o declínio com acusações de má conduta sexual. Os dois documentários vão pelo mesmo caminho: uma abertura bombástica, trilha sonora explosiva e reviravoltas fora de hora para chamar a atenção. Ambos adotam uma postura sensacionalista na abordagem e algum despreparo por terem sido feitos, aparentemente, às pressas. 

Passeando pelo catálogo das plataformas, existem tantos documentários que é impossível decidir o que ver. Com assuntos variados, ao assistir aos trailers, parece que todos seguem a mesma combinação de batidas, reforçando o jeito repetitivo e formulaico de vender a obra. Em alguma medida, todos eles, inclusive os analisados neste artigo, se parecem, mais ou menos, com os reality shows da Discovery. A música tensa, a narração do reality trocada por depoimentos genéricos e as viradas a cada tempo específico da minutagem estão todos lá.

Enquanto escrevia este texto, abri o aplicativo da Netflix na aba de documentários e me surpreendi, não positivamente, com a quantidade de material disponível. Há alguns destaques, como os da Petra Costa ou alguns do gênio e saudoso Eduardo Coutinho. Na Globoplay também existem vários bons documentários que não seguem essa linha analisada. Porém, isso me fez pensar em como a fórmula apontada por Renato Terra e narrada por Stycer em sua coluna, parecem ter tomado conta das produções atuais. Não são todos, obviamente, mas observando anos anteriores, esse incômodo não estava presente, ou se estava, era menos perceptível. 

Parece curioso e desastroso pensar que os documentários estejam tentando concorrer com a atenção dispersa do público e tenham que apelar para recursos sensacionalistas ou truques de montagem que até então funcionavam apenas na internet. Assim que terminei de assistir ao doc. do Collor, a plataforma me sugeriu Entreatos (2004), de João Moreira Salles, sobre a campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. Como estava com tempo sobrando, resolvi tirar da lista esta pendência. Depois do encerramento, num tempo que passou voando, a pergunta ecoando foi: como algo tão simples — bastidores de uma campanha política — pode ser tão rico, saboroso, interessante e enérgico sem precisar de trilha sonora e idas e voltas na linha cronológica?  

A única resposta possível, e que parte de uma especulação deste colunista, é que até um gênero cinematográfico com suas especificidades, com outra lógica de tempo, talvez esteja se rendendo a homogeneidade das plataformas globais e se transformando num emaranhado de produtos sem personalidade, igual as séries ou filmes de ficção lançados aos montes. De Entreatos, lembrei-me de um outro doc. que ocorre em paralelo, Peões (2004), de Eduardo Coutinho, também lançado no mesmo ano da obra de Salles. Como Peões acompanha as greves dos metalúrgicos no ABC na época da ditadura, me ocorreu um outro documentário, que funciona em seu próprio tempo de análise, o emocionante Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil (2019) da diretora Carol Benjamin.

Como a lista de documentários históricos ou contemporâneos que são muito bons e que não funcionam na demanda Fast Entertainment seria infinita, vamos parar por aqui. A conclusão mais fácil e menos crítica, seria de que esse modelo de consumo — o erro começa ao relacionar a arte unicamente como consumo — seria um sinal dos tempos. Contudo, seria importante pensar que a lógica imposta pelas grandes plataformas, talvez seja uma maneira perigosa de colonização frente a uma população que pouco conhece ou quer conhecer sobre a influência na formação de gosto, estética e consumo. 

Nessa ocupação desmedida e desregulada, ou com regulação frágil, como vimos acontecer esta semana no Brasil com o PL do Streaming, perde-se o próprio sabor do tempo de apreciar e deixar decantar os fatos apresentados, além da compreensão e originalidade do registro proposto pelo documentarista. O Fast Entertainment ou a estética ruidosa do reality show pode acabar matando um gênero cinematográfico em que o tempo das coisas, da pesquisa e da análise se transformem em mero entretenimento acrítico, pouco ético e insuportável de assistir.

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