Crítica: Seu Cavalcanti
Seu Cavalcanti
Direção: Leonardo Lacca
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2024
Elenco: Severino Cavalcanti, Tereza Cavalcanti, Isabel Novaes.
Sinopse: Filme sobre um senhor com 90 e tantos anos de idade e uma saúde de ferro. Desde o início dos anos 2000 filmando o cotidiano de seu avô, o cineasta percebeu a tamanha figura que era o senhor que lhe tornou um profissional de tanta excelência.
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Durante os últimos 20 anos, o diretor Leonardo Lacca filmou o seu avô, Seu Cavalcanti, o personagem-título deste longa. Nesse ínterim, ele confessa que, durante a obra, não lhe passou pela cabeça que estivesse fazendo um filme sobre o próprio avô; mas estava. A docuficção que estreou na Mostra de Tiradentes este ano é um híbrido entre as aventuras desse personagem adorável e pitoresco e um drama familiar com tom confessional — e eu gosto de ambos os filmes.
Diante de tanto material, mal posso imaginar a dificuldade que deve ter sido para o diretor encontrar o cerne dessa obra, o fio condutor que nos guiaria pelas peripécias de um senhor de 90 anos tão cheio de vitalidade. Por outro lado, me parece que transformar o próprio avô, sujeito carismático e identificável, em um dos melhores personagens do ano no cinema nacional deve ter sido uma tarefa fácil. Como Lacca mesmo diz, Seu Cavalcanti nunca se intimidou diante das câmeras, e por essa razão o diretor se via tão fascinado por ele. Mesmo com uma lente gravando cada movimento seu, ele continuava sem medo.
Uma das cenas mais marcantes deste filme e que mais o explica, na verdade, é quando o diretor vocaliza algo que eu também sempre acreditei que valesse para o cinema: todo mundo é capaz de atuar. Na história da nossa própria vida, representamos papéis diferentes em cada fase, para cada grupo, e mesmo quando estamos a sós com nós mesmos, podemos transmutar nos diferentes personagens que vivem em nós. A diferença entre uns e outros é a honestidade e a frequência com que somos capazes de fazê-lo. Dito isso, por que Seu Cavalcanti não seria um ator?
Acreditando nessa premissa, o filme desenvolve o personagem em suas múltiplas facetas — sempre atuando. Independente se de forma consciente ou não, Seu Cavalcanti está constantemente “roubando” cenas com carisma singular. Ao lado de Maeve Jinkings, fantástica ao desaparecer por completo no personagem e nos fazer comprar aquele romance aventureiro com a maior naturalidade possível, ele é uma verdadeira estrela de cinema. Sinto que jamais saberíamos que se trata de algo simulado não fossem as intervenções do narrador deixando bem claro que se tratava de um outro filme.

É muito especial quando a obra permite a si mesma a consciência da sua natureza fílmica, mas é melhor quando não o faz por cinismo, e sim pelas vantagens que existem em expor a participação ativa do narrador/diretor/roteirista ao deixar o que se filma ainda mais honesto. No longa, é nítido que vemos um neto olhando para o avô com tamanha saudade e admiração que as palavras que atravessam a tela têm o poder de nos tocar diretamente, mas também é claro que temos um diretor que controla cada sequência e dá a estas uma razão de ser.
Quando a obra, por sua natureza tão próxima e volume tão imenso de material base, corre o risco de se tornar piegas ou excessiva, é quando a importância de uma montagem acertada transparece. O filme acaba sendo escrito nessa fase e o que eu vejo é que Seu Cavalcanti foi perfeitamente filtrado e organizado para dar vida a uma narrativa divertida e amorosa sobre a terceira idade e os vínculos familiares geracionais ali presentes. É justo isso que cativa e ilumina a obra — além das experimentações com efeitos nas imagens, algo que ele faz tão bem, também.
Quando vou parar de te filmar? Ao fim, essa pergunta dolorosa que o diretor faz para encerrar me fez pensar de imediato: afinal, quando paramos de filmar as pessoas que amamos quando elas nos deixam? Parece que o filme que passa na nossa cabeça no processo de luto não se encerra com os créditos finais, é uma franquia cheia de continuações. É, também, uma docuficção, pois, à medida que vamos perdendo os traços da realidade pela falha da memória que frequentemente nos trai, inventamos características e acontecimentos para preencher as lacunas que nos sobram. É o que eu sinto com esse filme, não existe uma conclusão, pois a existência de alguém como Seu Cavalcanti não se finda, ao contrário, sua presença e não-presença se tornam apenas uma questão eventual de percepção.
Nota: 3,5 /5