Crítica: Virgínia e Adelaide
Virgínia e Adelaide
Direção: Jorge Furtado, Yasmin Thayná
Roteiro: Jorge Furtado
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2024
Elenco: Sophie Charlotte, Gabriela Correa.
Sinopse: Virgínia e Adelaide é a história de um encontro extraordinário de mentes brilhantes. Na trama, acompanhamos Virgínia Leone Bicudo (Gabriela Correa), uma mulher negra socióloga e considerada a primeira psicanalista brasileira, e Adelaide Koch (Sophie Charlotte), uma médica judia alemã e também psicanalista. As duas se esbarram em 1937, um ano após a chegada de Adelaide ao Brasil fugindo da perseguição nazista acompanhada do marido e suas duas filhas.
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Virgínia e Adelaide, novo filme dirigido e roteirizado por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, agora disponível para aluguel digital, conta a história de Virgínia Bicudo, uma mulher negra, socióloga e que viria a ser a primeira psicanalista brasileira, e Adelaide Koch, a primeira psicanalista didata do Brasil e da América Latina, judia refugiada da Alemanha nazista, reconhecida pela famosa Associação Internacional de Psicanálise. Junto a Virgínia, elas foram as construtoras e formadoras da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Adelaide também foi a principal formadora de psicanalistas no país. Virgínia foi a principal e primeira difusora e comunicadora da psicanálise através de programas de rádio e colunas em jornal.
Na nova empreitada cinematográfica de Furtado e Thayná, o resgate de duas históricas figuras brasileiras, ganha corpos de documentário e ficção, através da encenação da análise psicanalítica de Virgínia (Gabriela Correa), com sua analista, Adelaide (Sophie Charlotte), com cenas intercalados de sessões e depoimentos da vida individual de cada uma. Virgínia, nascida em 1910, filha de um pai negro, que era filho de escravizados e que tinha o sonho de ser médico, mas acabou fezendo carreira nos Correios e Telégrafos, e de mãe italiana de família pobre, que veio para o Brasil fugindo da fome na Itália para trabalhar nas lavouras de café.
Adelheid, ou no abrasileirado Adelaide, nascida em 1896, por ser judia, fugiu da Alemanha nazista com o marido e filhos, chegando ao Brasil em meados de 1936, pouco antes da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Não era uma situação confortável — tínhamos à época os Integralistas, um tipo de fascismo à brasileira —, mas distante da perseguição nazista. Aos poucos ela foi se integrando à sociedade brasileira com pares na psiquiatria. Depois de um ano no Brasil e com algum domínio do idioma, Adelaide recebe a visita de Virgínia, sua primeira analisanda no Brasil, que estava interessada em começar o processo analítico para entender, junto a seus estudos em sociologia, o racismo brasileiro. É de Virgínia Bicudo, um dos primeiros estudos que se tem notícia sobre os impactos do racismo na vida subjetiva de pessoas negras.

Pelo tamanho da introdução, o leitor pode ter uma noção da grandiosidade dessas figuras para a vida pública brasileira. Contudo, o roteiro de Furtado e Thayná, mesmo citando todos esses fatos e passando por eles com algum destaque, não consegue transmitir de maneira menos introdutória e básica mais da vida dessas personagens. As duas únicas pessoas em tela são Virgínia e Adelaide, não há nenhum outro personagem. Enquanto Virgínia é analisada por Adelaide, a direção divide a tela para captar o discurso de Virgínia e as reações paisagísticas — típicas de um psicanalista — de Adelaide. Não é inventivo, nem ajuda na compreensão, mas rende percepções curiosas. Além disso, o tom teatral dos depoimentos documentais é didático, quase excessivo, reforçado por imagens históricas ao fundo.
Como o filme se passa majoritariamente na sala de Adelaide e no consultório, intercalado com os depoimentos, tudo que acontece na vida das personagens se dá pela fala. Essa escolha simplifica o processo e não causa comoção. Quem trabalha com a psicanálise vai se divertir com algumas cenas da análise, com as piscadelas da associação livre, com os caminhos apontados por Adelaide e pelo “inconsciente” de Virgínia. Para um psicanalista, é um filme com easter eggs, para quem não é, é um filme simpático com fundo histórico interessante. Um mérito destacável, é que seja um psicanalista que não conhece Virgínia e Adelaide, seja o espectador comum, a forma como o roteiro é construído, deixando propositalmente eventos superficiais, desperta curiosidade em descobrir melhor quem foram essas mulheres.
É verdade, contudo, que isso pode ser descuido dos roteiristas, aliado com a montagem às vezes bagunçada, que faz saltos temporais longos, acreditando que a elipse solucionaria a questão. Não fossem algumas mudanças de perspectiva e caracterização das personagens, ficaria difícil, e acaba sendo, prever quando algumas coisas aconteceram. É uma decisão curiosa, pois no início há atenção às datações dos acontecimentos, como o nascimento de Virgínia, a migração de Adelaide, o nascimento dos pais, etc. Parece um tipo de instabilidade desnecessária, facilmente evitável e contornável.
Esse movimento gera incômodo, mas é salvo graças as boas atuações da sempre competente Sophie Charlotte, com um sotaque alemão pesado, e de Gabriela Correa, que carrega em sua Virgínia um tipo de doçura e curiosidade, ao mesmo tempo que há dor e solidão vivenciada pelo racismo. O reconhecimento do ódio racial e a herança da escravidão brasileira, encontram eco na perseguição dos judeus na Alemanha nazista. Busca-se, com relativo interesse e sucesso, paralelos entre os tipos de escravidão, mas que são debelados por Virgínia ao dizer que é possível negar ser judeu, bastando dizer que não é, enquanto é impossível negar ser negro, pois é o outro que informa.

Os debates em torno da questão racial e do feminino, por vezes parecem ser feitos por pessoas do século XXI, embora o filme se passe no Estado Novo Getulista. É um discurso atualizado, com palavras modernas que, com toda certeza, através da análise, se chegaria nessa questão, em especial no descobrir-se uma mulher e uma mulher negra. O ponto é que algumas palavras ainda não estavam presentes naquele vocabulário, criando um outro tipo de suspensão da narrativa, como a falta datação dos acontecimentos, por exemplo. A impressão que se tem é que ambiente, misturas do sotaque e o português, cenário de memórias, relatos e cartas encontrados pela pesquisa, destoam da liberdade criativa dos roteiristas que não encontraram a uniformidade necessária para algo mais estável.
Virgínia e Adelaide escolhe o documentário ficcional para trazer ao grande público duas figuras fundamentais para a vida da psicanálise brasileira e para o debate racial. Sem Virgínia Bicudo, que morreu em 2003, e Adelaide Koch, morta em 1980, não existiria o caminho sólido que a psicanálise brasileira trilha até hoje. A mistura de gêneros cinematográficos feita pelos diretores tem altos e baixos, sendo salvos pelo carisma e competência de Gabriela Correa e Sophie Charlotte. A tentativa de Virgínia e Adelaide em conectar e repaginar debates de quase cem anos atrás como se fossem hoje, não foge do didatismo e simplismo tradicional nas narrativas biográficas. Por outro lado, existe carinho e sustentada paixão ao resgatar duas mulheres basilares para vida política, psíquica, cultural e imaginária do povo brasileiro.
Nota: 3 /5