Entre o terror e amor, em “Extermínio 3: A Evolução” a morte não é banal
Filmes de terror, em sua maioria, não são grandes estudos de personagem, nem costumam gerar grandes teses a respeito de um sentimento específico, mas é inegável que pela quantidade de filmes produzidos, os melhores captam um sentimento social de determinada época. A inveja perversa e o mal estar filial em O que Terá Acontecido a Baby Jane (1962); o racismo e o preconceito social em A Noite dos Mortos Vivos (1968); o pânico satânico (a.k.a. comunismo) da classe média branca urbana estadunidense em O Exorcista (1973); as pandemias virais em O Extermínio (2002); a maternidade e a depressão em Babadook (2014); e a renovação do terror social com Corra (2017) de Jordan Peele. Exemplos não faltam e a lista poderia ser longa, quase infinita.
Sustos, sangue e vísceras também são a grande diversão do terror e esses elementos podem formar grandes filmes. É um direito não querer comentário social e vida que segue. O curioso em Extermínio: A Evolução, agora disponível em aluguel digital, é conseguir equilibrar o sangue e as vísceras, ao comentário social dos nossos tempos. Muitos críticos apontaram ser sobre o Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) — o filme é inglês, feito pelos ingleses Alex Garland, que escreve, e por Danny Boyle, que dirige — ambos retornando à franquia depois do sucesso de 2002. Outros críticos apontaram, que é mais óbvio, ser sobre a pandemia de Covid-19, ou sobre os dois eventos. Isolamento, alienação, negação e desimportância. Pode ser também sobre as guerras, especialmente sobre o abandono de um povo e um território. O exemplo mais vocal, acaba sendo o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza.

O que difere este terceiro filme dos demais da franquia e até do gênero em geral, é seu comentário perspicaz sobre a banalização da morte. O terror raramente faz grandes reflexões sobre a morte — mas sempre fez sobre o morrer —, pois em terror sempre há mortes e esperamos por isso. Na investida bem sucedida de Garland e Boyle, a morte e o morrer, e a importância do cuidado e ritualização como fundamento para a cura, amadurecimento e aceitação do fim, se transformam em elemento fundador do protagonista. (Antes de aprofundar a análise, é preciso dizer ao leitor que devido a extensão dos subgêneros do terror, riqueza de sentimentos e captura de percepções histórico-sociais, o que vejo como inédito, talvez já tenha sido feito por outros cineastas. Fique à vontade para contribuir com o debate). O diálogo a respeito de Extermínio: A Evolução, irá se concentrar nos aspectos narrativos, filosóficos e simbólicos desenvolvidos pelo roteiro.
Acompanhamos 28 anos depois, a vida isolada de uma ilha do Reino Unido com ecossistema próprio. Sabemos que a infecção foi contida antes de entrar na Europa. Essa ilha é separada do continente por um caminho que submerge na maré alta e fica disponível na baixa. As crianças são treinadas para atacar os zumbis e, ao entrarem na adolescência, são levadas até ao continente para aprenderem a matar. Matar é o ritual de iniciação. Jamie (Aaron Taylor-Johnson) e seu filho Spike (Alfie Williams), com 12 anos, depois de algum aperto e apreensão do filho na sua primeira caçada, conseguem retornar em segurança à ilha. À espera deles uma grande comemoração. Os feitos narrados pelo pai, são maiores do que os realizados pelo filho. Jamie é casado com Isla (Jodie Comer), que tem uma doença misteriosa, sofre de delírios com momentos de lucidez e está morrendo. Spike ao retornar da sua iniciação, descobre que o pai traí a mãe, que existe um médico no continente — nunca mencionado pelo pai e dito por todos da ilha como maluco — e resolve levar a mãe, sem consentimento do marido, para tentar salvá-la.

Alguns mitos são destruídos à medida que a história avança. O pai, que era um herói inquebrável, se transforma num homem falho e traidor. O isolamento humanitário e de cuidado, ganha contornos após o descobrimento do mundo. É violento a forma que o filho consegue enfrentar o pai como a quase declinação do édipo e toma lado da mãe, momento fundador daquela ideia de sujeito. A escolha aparentemente deliberada do pai de deixar a esposa morrer, visto que não há salvação, causa desconforto à medida que percebemos que talvez esse seria o plano do pai. Até a chegada ao médico excêntrico, não sabemos qual o sofrimento. É meio improvável que uma criança de 12 anos consiga sobreviver com uma mãe debilitada numa jornada cheia de perigos e constantemente são salvos por artifícios pouco honestos por parte do roteiro. São salvos, pelo menos duas vezes, com aparições de sujeitos poderosos, frente a ameaças imponentes.
É durante o trajeto que a relação maternal ganha alguma substância e vemos o talento de Jodie Comer. As oscilações entre realidade e delírio, transforma a relação materna em quase conjugal, uma vez que a mãe chama o filho de pai, reforçando a ideia edipiana do confronto entre Spike e Jamie. Pois é verdade que, uma vez que o filho toma o lugar do pai, não deixa de ser, mesmo que simbolicamente, uma posição conjugal assumida pelo filho. Esses enlaces de signos, são espelhados na forma que os zumbis se comportam. Adquiriram mutações, alguns são rápidos, outros lentos como vermes e existe um Alfa. O Alfa, além de forte, alto e veloz, é especialmente avantajado, detém um pênis enorme. Faltou sutileza mas, em linhas gerais, o poder masculino, na atual cultura, se mede pelo tamanho do falo — que não precisa ser o tamanho do órgão genital.
Estabelece nesse ponto, ainda que pobremente, um paralelo entre poderes. O amor de um filho pela mãe e a necessidade de salvá-lá, e o instinto animalesco, mantido num morto-vivo, que foi capaz de engravidar uma infectada que, numa cena chocante (e brega), junto a Isla — a ideia era um paralelo entre mulheres em condições maternais? — , dá a luz a uma criança não infectada. São tramas paralelas a serem desenvolvidas no segundo filme da nova trilogia. Pelo menos essa é a ideia, segundo o diretor. Mata-se e morre ao longo do trajeto até chegar ao grande e melhor personagem da história, o famoso doutor Dr. kelson. Ralph Fiennes, mais uma vez num papel intrigante e performático, interpreta o Dr. Ian Kelson. Com poucos minutos em tela, ele se transforma na cola mais elaborada de toda a narrativa de simples sobrevivência que vinha sendo desenvolvida.
O personagem de Fiennes só aparece depois de uma hora de rodagem. É dele a fogueira avistada por Spike enquanto estava em sua primeira caçada. E é nele em quem deverá confiar para salvar sua mãe adoecida. Doutor Kelson mantém um santuário de crânios esqueléticos, em respeito aos mortos da infecção. Com tantos corpos jogados, ele começou a cremá-los e limpar os crânios, em respeito às vidas perdidas. A montanha de esqueletos, que inclusive está nos posters, acaba sendo uma lápide de lembrança. Essa história é contada a Spike primeiramente pelos moradores da ilha, em tom trágico e absurdo, tentando provar ao garoto que o doutor era realmente maluco. Depois, é recontada pelo próprio Kelson, montando assim, a percepção de que matar e morrer não pode ser algo banal, corriqueiro e cotidiano, mesmo em situações catastróficas.

Dessa forma, para Spike, outro mito desmorona. A ideia de que matar, mesmo que represente uma ameaça, não pode ser feita de qualquer forma, sem custos. São mortos que não morreram. Nem tudo é tão real como o ensinado pelo pai. Há de se fazer nascer o afeto e o cuidado, inspirado e instalado pela mãe, e reforçado pelo Dr. Kelson, com o intuito de não perder o simbólico, não cair no vazio da desumanização e do amadurecimento cruel, precocemente apresentado pela comunidade que nasceu. A morte não deveria ser a iniciação de ninguém, pois nada mais real, enquanto morte do símbolo imaginário, do que a morte. É por isso que para Spike fazer sua primeira morte, ainda que seja de alguém morto, pareceu tão difícil. Parece haver a esperança da salvação em algo, ainda que pelo amor e carinho da mãe, frente ao terror e podridão do isolamento.
Quando Isla descobre que está com câncer, algo diagnosticado com muito cuidado por Dr. Kelson, ou seja, preserva-se a dignidade e a ética frente ao humano, Spike entra em contato com a morte tal qual como ela é. Com a ideia de fim não pela dureza e brutalidade, mas pela dignidade da sobrevivência e pelo acaso, acidentes da condição humana. É possível morrer de outras coisas. E é possível morrer enquanto se está vivo. Com isso, também se faz possível acessar a morte com respeito e carinho, apesar da dor. Quando Dr. Kelson volta com o crânio de Isla, Spike é convocado a fazer um ritual de passagem, com o bebê não-infectado no colo, escolhendo para a mãe um lugar no santuário, o mais alto, por sinal. Um ritual humano e digno, em silêncio, com espaço e o saber sobre o fim, que pode chegar sereno e escolhido, pois Isla escolhe morrer sem dor e sofrimento. É nesse momento, que o simbólico avança e se apresenta como necessário.
“Memento Amoris”, ou “Lembra-te da morte” dito por Dr. Kelson, parece ser a preservação do rito de passagem, da humanização frente ao fim. É diferenciar, profundamente, o matar quem morreu e ainda não está morto, e perceber a morte que chega para aqueles que estão vivos. Os moradores da ilha, em alguma medida, talvez sejam tão selvagens como os infectados. Dr. Kelson e agora, talvez Spike, ao verem humanidade na selvageria, passam a ser vistos como loucos, pois dentro do caos, enxergam a vida. A iniciação de Spike, muito antes do tour pelo continente, se deu num ambiente em que a morte é banal. A infância, pelas piores vias, se fez inútil, mas relembrada por Spike quando, antes de sair de casa, pega o action-figure. Existe algo que não se formou e há resquícios de uma infância afetada positivamente pela mãe e duramente retirada pelo pai e pela comunidade.

Perde-se a mãe, perde-se a imagem e o poder do pai, e perde-se o guia, mas sempre resta algo. Na pior das hipóteses, a solidão, o vazio. E nesse cenário, a extrema violência. Spike, agora sozinho, movido pela curiosidade e sobrevivência, se depara com a violência viva, provocada pela crueldade daqueles vistos como sãos. Perto do inumano causado pela infecção, os vivos-humanos, no cenário de isolamento e abandono, conseguem ser piores que os desalmados pelo vírus. Ser corroído pelo vazio, apesar da mensagem deixada ao pai, pode ser uma escolha quando se encontra com o grupo ao final. Sobreviver frente a extrema violência dos humanos, talvez seja mais difícil do que frente aos infectados. Há esperança do retorno paterno, àquele que pode salvar, pois Spike ainda é uma criança. Mas não é nada muito diferente da ingenuidade dos adultos que esperam o grande Pai (o líder carismático, o tirano, a ordem), ou de supostos deuses seletores e coletores, a salvação frente à barbárie provocada por eles (nós) mesmos.
Não deixa de ser curioso pensar que o Alfa é mantido vivo por Dr. Kelson, apesar de sua conhecida força e instinto animal de sentir-se ameaçado e atacar. E também, não deixa de ser curioso pensar sobre como a ética do cuidado, do contorno do simbólico feito por Isla, mesmo na doença, pode ter papel fundamental para a continuidade da sobrevivência afetiva em Spike. Se Extermínio continuará apresentando mais do que combates violentos estilizados pela ótima lente de Danny Boyle, ainda é preciso esperar. O próximo filme está previsto para 2026 e pelas mãos da diretora Nia da Costa. Em um mundo onde humanos conseguem ser mais destrutivos do que os infectados de uma ficção, pensar na morte e no morrer como algo dolorosamente humano e nada banal, pode parecer revolucionário e ainda ser uma forma empática de enxergar saídas menos excludentes para os nossos problemas. Frente a banalização da morte, só o contorno simbólico do afeto.